Editorial de Fevereiro 1997 A avaliar pelo que vou ouvindo, aos próprios professores, o mal estar docente continua em progressão. O número de pessoas, não professores, que opinam sobre questões de ensino também se tem multiplicado. O número de jornalistas, não especializados em ensino, que escreve, fala ou promove debates sobre esta matéria vai também em crescendo. E se uma boa parte dos professores é muito crítica e pessimista em relação à escola, os não professores não são menos criticos ou menos pessimistas que os professores. Se os professores os que são criticos não apontam todos na mesma direcção, nem se põem de acordo sobre o essencial do problema, a discordância é ainda muito maior entre os não professores. O meu desconforto não decorre do facto de existirem diferenças de opinião. Estas diferenças, quando se confrontam em profundidade, são um bem. Estou convencido que só as divergências discutidas e aprofundadas trarão a síntese que garanta soluções para os problemas do presente e do futuro. O que me causa desconforto é a forma superficial ao jeito do novíssimo jornalismo como se abordam os problemas do ensino. Como metáfora, desta incapacidade para entender a escola de hoje, fica a exigência do Presidente do Partido Popular (PP), Manuel Monteiro, que se propõe resolver o problema do insucesso escolar em Portugal, recorrendo a mais exames e a professores mais severos. Estas opiniões em turbilhão, pouco ou nada sustentadas, feitas de meias frases na televisão, de muito ruído na rádio e de simplismo nos jornais, não formam nem informam a opinião pública, nem promovem as mudanças que nos tornem a todos menos pessimistas em relação ao sistema de ensino em vigor. Pelo contrário entre os professores e na opinião pública parece permanecer e reforçar-se a ideia de que embora mudem os ministros os problemas permanecem ou agravam-se. Procurar perceber as razões deste mal estar dos professores, a indiferença, apatia ou descrença dos alunos, o olhar desconfiado da opinião pública, são meios de entender a nossa escola, de lhe descobrir as mazelas e de apontar caminhos de solução. Os professores têm redobradas razões para não se sentirem felizes ou profissionalmente realizados. A sua actividade profissional quotidiana é cada vez mais atravessada por profundas contradições. Nas nossas escolas os professores enfrentam cada vez mais exigências antagónicas, umas decorrendo da alteração da nova procura escolar alunos cultural e socialmente cada vez mais diversos outras resultando das exigências em crescendo que o poder político e a opinião pública vão colocando às escolas e aos professores. Uma primeira contradição, a que os professores estão sujeitos, resulta das novas exigências postas à escola. Os problemas sociais multiplicam-se e intensificam-se, um número cada vez maior de famílias mostra-se incapaz de desempenhar o seu papel educativo, um número cada vez maior de pais mostra incapacidade para exercer o seu papel de autoridade e a responsabilidade por todas estas incapacidades das instituições e pessoas recai sobre a escola e os professores. Estes são cada vez mais solicitados e responsabilizados quer pelos problemas sociais gerados pela economia, pela sociedade e pela política dominantes, quer pela incapacidade que a sociedade mostra em encontrar respostas para os problemas que ela mesma vai criando. A este processo chama-se rentabilização política dos professores. Traduz-se de uma forma simples, se existem muitos problemas a culpa é da escola e se a escola não resolve a culpa é dos professores. Os políticos, os pais, os donos da economia e do emprego, saem airosamente por cima. A incapacidade em atacar as causas de desconforto social não lhes é imputada, os professores servem de bode expiatório. A consciência que os professores vão tendo desta situação, associada a maus salários e a péssimas condições de trabalho não podem deixar de se reflectir no mal estar sentido pelos docentes. Mas os professores são também chamados enquanto agentes de execução das políticas educativas a operar a selecção e a reprodução social, ao mesmo tempo que se confrontam com o discurso retórico do poder e da opinião pública que espera ou exige uma escola capaz de operar a promoção de igualdade de oportunidades. De um modo geral os professores têm consciência que na sua actividade profissional quotidiana promovem a selecção social embora preferissem promover a igualdade de oportunidades. Consciente ou inconscientemente os professores vivem o seu dia a dia em contradição consigo próprios. Os professores sabem que a sua sobrevivência profissional, a manutenção de restos de autoridade, o cumprimento de programas, a resposta aos objectivos educativos que lhe são exigidos, depende largamente da sua capacidade de manipular os alunos e têm mais ou menos consciência que ao procederem a essa manipulação eles mesmos estão a ser objecto de manipulação por parte de quem manda e decide. Na escola, os professores mantêm-se sempre em cena, seja no grupo/disciplina, seja na sala de professores contracenando com os seus pares seja na sala de aula, representando para um grupo heterogéneo de alunos. Os professores, ao contrário de outras profissões em que a relação com o utente é importante médicos, enfermeiros, por exemplo são chamados a lidar com grupos de alunos. Grupos que, dada a disparidade da sua origem social e cultural, são cada vez mais diversos e difíceis de entender. As reacções e comportamentos do seu público alvo escapam-lhes constantemente tornando a relação pedagógica cada vez mais complexa e difícil. Por seu lado, a escola mostra-se cada vez mais incapaz de responder à diversidade cultural e social das crianças e jovens que a procuram ou para lá são empurrados aumentando assim o desconforto de professores e alunos. Acresce ainda que o rol de solicitações contraditórias a que os professores estão sujeitos vai em crescendo. Hoje pede-se aos professores que em simultâneo sejam capazes de impor a disciplina numa escola que, a não sofrer modificações radicais, tende para uma indisciplina crescente ao mesmo tempo que lhe pedem um papel afectivo capaz de, em muitos casos, substituir a afectividade que outrora era cometida às famílias. Estas e outras dificuldades, sumariamente enunciadas, vêm mostrar que os professores precisam cada vez mais de uma formação profissional e continuada centrada sobre a actividade concreta de cada escola de modo a permitir gerar os saberes dos professores capazes de lhes permitir, em cada momento, agir sobre a realidade concreta que são obrigados a viver. Não é esse o caminho que tem vindo a ser percorrido. Pelo contrário, nos últimos anos, temos assistido a uma diminuição na duração da componentes profissionalizantes da formação, na sua retirada da escola, na sua entrega a instituições e pessoas estranhas ao quotidiano escolar. Em suma, a formação profissional e continuada dos professores avança a passos galopantes para discursos e práticas escolarizantes. Os professores, dada a especificidade da sua função, são já portadores de saberes escolarizados, aqueles que disponibilizam aos alunos e que em múltiplas situações os afastam dos alunos. O que vimos a assistir é ao reforço, através das diversas modalidades de formação ao seu dispor, desse processo de escolarização. Não admira que o discurso dos professores seja cada vez mais retórico e as suas práticas cada vez mais afastadas da realidade e portanto mais frágeis e improfícuas. Por seu lado a Administração Central recorre cada vez mais aos professores mais escolarizados no sentido de os transformar em técnicos e responsáveis pela gestão da política educativa. Também aqui não admira que o discurso retórico vá em crescendo. As orientações e as soluções apontadas estão cada vez mais distantes da realidade. Tomar consciência destas situações, debatê-las, procurar inverter estas tendências, reganhar confiança nos saberes dos professores construídos em contexto de trabalho parece cada vez mais necessário e também uma das condições para reinventar a escola dotando-a das condições que nos permitam ser profissionalmente um pouco mais felizes. José Paulo Serralheiro
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