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AS QUIBÍRICAS ou a ruptura do discurso camoniano

Quando em 1972, ainda em tempos salazaristas de má memória colectiva, se comemorava, com pompa e circunstância, um pouco por toda a parte do País, os quatrocentos anos da primeira edição de Os Lusíadas, chegava da então Lourenço Marques, capital de Moçambique, pelas mãos e erudição de Frei Ioannes Garabatus, uma edição de Quibíricas, poema ético em oitavas, que correu no ano camoniano como de "suspeitíssima atribuição" por parte desse mesmo Frei Ioannes Garabatus e foi publicado com "real privilégio de Jorge de Sena", num prefácio erudito, irónico e satírico como convinha a natureza das Quibíricas, espalhadas pelas múltiplas oitavas dos seus onze cantos.

Tratou-se realmente de uma edição que teve a sua "história" e foram poucos os exemplares que chegaram e se espalharam pela Metrópole, como se dizia nesse tempo, ou como depois se explicou na oportuna reedição do livro de Frei Ioannes Garabatus - que é nada mais nada menos, como alguns sabem, o nome literário usado pelo Pintor António Quadros há pouco falecido (1933-1994) -, acerca dos mil e quinhentos exemplares da primeira edição, saídos numa "madrugada nas barbas de alguns alguéns" e dos quais algumas escassas centenas se puderam distribuir pelas paragens deste reino. Mas o livro resistiu, sim, muitas das suas oitavas foram ditas e cantadas nas vozes de José Afonso, Maria do Céu Guerra ou Amélia Muge, e pôde depois, com a 2ª edição, publicada pela "Afrontamento", Porto -1991, entender-se melhor o trabalho poético e erudito, mesmo na carga vocabular e expressiva da sua estrutura formal, sabendo-se hoje como há mais de vinte anos As Quibíricas desejavam ser a pedrada no charco das festas academizantes em torno de Camões (que de nada, afinal, nunca teve culpa), ou seja, parafraseando ainda as palavras de Almada Negreiros, onde muita gente morreu de fome e outra se empanturrou a custa do Épico, que morreu triste, pobre e cego de um olho (direito ou esquerdo?), como compete a sua velha lenda.

Mas todo esse trabalho de Frei Ioannes Garabatus, no propositado sentido de ruptura que se evidencia ao longo deste longuíssimo poema ético em tempo de serem outras as trombetas que se ouviam no reino, no silenciar da guerra colonial que se desencadeava noutras paragens e capins africanos, se desdobra na alteridade intencional do próprio canto, para lá da "suspeita" ou "ignorância" sobre o verdadeiro autor das 1180 oitavas que se repartem pelas páginas minuciosamente descritivas de Quibíricas.

O erudito prefácio de Jorge de Sena, que embarcou na "decifração" séria e investigadora das diferentes pistas bibliográficas para que aponta a tecitura poética de todo o livro, conduz e orienta o leitor no entendimento sebastiânico do próprio canto, já que naturalmente a origem do seu título tem raiz remota e evidente em Quibir ou Kebir, na lendária memória do rei que se perdeu nas terras africanas de Alcácer- Quibir. Claro, é o que se diz. Ou dizem-no mesmo com toda a garantia e saber de erudição feito muitos dos autores referidos nesse prefácio entusiástico e caloroso como Jorge de Sena soube em 1972 interpretar e cobrir com a roupagem da sua autoridade intelectual esse livro que poderia correr o risco de ser apenas, na sua intenção quase apócrifa, um mero artifício ou habilidade literária e poética de um excelente Pintor que até aí navegara por outras águas. Talvez por não querer estragar então as festividades camonianas a nível nacional, como era de regra, e ser As Quibíricas um desafio que se colocava a sagrada e consagrada "sabedoria" de quem tratava Camões por tu e não podia acreditar (ou mesmo aceitar) que na sua arca de tantos anos houvesse ainda este longuíssimo poema ético e inédito. Paciência, podemos dizer agora no acto da sua releitura, não se pode saber tudo e no horizonte de outros saberes sempre poderá sempre surgir um "falsíssimo" Frei Ioannes Garabatus para fazer estalar o verniz de tanta e tamanha erudição.

No entanto, para lá desse "artifício" poético, o que deve entender-se da leitura ou releitura de Quibíricas (e agora mais a sério) é, sobretudo, o sentido discursivo de ao nível da escrita, talvez desse barthesiano "grau zero da escrita", desejar discorrer sobre os males da guerra e os desencantos e desconcertos deste mundo, num tempo penumbroso como o que se vivia e conhecia em 1972, tanto no Porto como em Lisboa, em Luanda, Bissau ou Lourenço Marques. Ainda e sempre na lembrança de outros Adamastores ou renovados e ressuscitados velhos do Restelo:

Adamastor, sumindo está das margens

a derrota antiga que outra é a hora.

Que, para explicar o error Luso,

mais que um error divino será de uso.

E, nessa atitude consciente e irónica de querer zombar diante do conhecido e sabido sentido da História, Frei Ioannes Barabatus não deixa de clamar:

Vejo quanto não vejo ou ver não quero

por temor de que o visto se suceda

obrigado a existir no tempo zero

de onde por futurá-la não se arreda.

Por último, cabe ainda dizer que, na leitura criativa/recriativa deste imenso discurso em redor de Camões, sempre o leitor pode voltar a descobrir as velhas "lições" da nossa própria história através destas oitavas claramente sebastianistas de Frei Ioannes Garabatus - que se revela, nesta intencional ruptura do discurso camoniano, um frade atrevido, brincalhão e zombeteiro que, pela estratégia da clara intertextualidade de que se serviu, soube erguer um admirável poema ético que se lê e pode reler com outros olhos e o mesmo entusiasmo da primeira leitura de há mais de vinte anos. Por isso, dizemos que se deve ler este livro e depois digam lá se o sentido (falso) do mesmo discurso camoniano se não ressuscita e recria, de forma esplendorosa, pelas muitas oitavas de Quibíricas. Mas, ao recordarmos os propósitos deste livro de Frei Ioannes Garabatus/António Quadros, desejamos apenas não deixar por mais tempo silenciada a morte de um grande poeta e pintor deste tempo português, que em manhã primaveril de 1994 faleceu subitamente em Viseu, onde continuava a pintar com grande e febril entusiasmo após o seu regresso definitivo a Portugal.

 

FREI IOANNES GARABATUS
AS QUIBÍRICAS, poema ético Ed. Afrontamento / Porto.

Serafim Ferreira


  
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Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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