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Política e Administração da Educação

A propósito do II Congresso Luso-Brasileiro sobre Política e Administração da Educação, subordinado ao tema Investigação, Formação e Práticas, que juntou 300 participantes em Braga, nos dias 18, 19 e 20 de Janeiro de 2001, numa iniciativa conjunta do Forum Português de Administração Educacional, do Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional e da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Brasil), publica-se o texto apresentado na sessão de encerramento que foi presidida pelo Ministro da Educação.

Evitando os riscos de concluir pelos outros ou de pretensamente representar e sintetizar a diversidade de posições e de interesses que tiveram legítima expressão académica e política ao longo dos trabalhos realizados, quero antes, brevemente, aproveitar para afrontar a tradicional falta de reflexão e de compromisso democráticos que, em Portugal como no Brasil, marcaram no passado (não tão longínquo) a investigação, a formação e as práticas político-administrativas da Educação, não obstante algumas vozes interessantes na defesa de uma organização escolar democrática e auto-governada, como por exemplo a de Anísio Teixeira no Brasil ou a de António Sérgio em Portugal (ambos de resto muito influenciados pelo pensamento de John Dewey), embora muito limitadas no seu impacto; retomo ainda o olhar crítico que o Prof. Stephen J. Ball nos deixou, na Conferência Inaugural, sobre os novos modos de regulação da Educação e das escolas públicas baseados no mercado, no gerencialismo e na performatividade, com a respectiva defesa, obsessiva, da produtividade, da competitividade e da qualidade de tipo contábil; recupero, sem pretensões de síntese, muitas análises e vários debates aqui ocorridos em torno da crítica aos fenómenos de despolitização da organização escolar e das práticas da sua administração, que subordinam a Educação a ideologias gerencialistas e a tecnologias de inspiração neo-científica, frequentemente de extracção empresarial, e revelo a minha reacção (mais do que o meu balanço) e demoro o olhar sobre o que considero mais criativo e mais relevante nos nossos discursos e argumentos.

Com efeito, a defesa de programas políticos que propõem a criação de mercados internos no interior da Administração Pública, avançando fórmulas para a construção de escolas eficazes, devolvendo responsabilidades e encargos sob a defesa de uma gestão centrada na escola e de uma autonomia meramente instrumental, consagrando modelos de avaliação e de prestação de contas baseados nas tecnologias de controlo propostas pela Gestão da Qualidade Total, ora (re)centralizando certos poderes de decisão ora descentralizando outros compatíveis com estratégias de desregulação e de privatização do sector público da Educação, vem nos últimos anos ocorrendo em quase todos os países e sistemas escolares.

Perante propostas e discursos que se apoiam em critérios pretensamente técnicos e de superior performance, dicotomizando política e administração, educação e democracia, pedagogia e cidadania democrática, através do recurso a narrativas racionalizadoras de inspiração neo-tayloriana, é indispensável submeter a análise crítica tais ideologias, tanto mais quanto elas parecem propagar-se de forma relativamente autónoma e independente face aos diversos contextos socioeconómicos e culturais e até mesmo face às diferentes forças políticas que neles governam.

Muitos dos trabalhos apresentados representam, segundo creio, contribuições e questionamentos incontornáveis, também enquanto exercícios cívicos, academicamente construídos, de resistência à despolitização da escola, de defesa de uma educação comprometida com os valores do domínio público, com o aprofundamento da democracia e da cidadania, com a igualdade e a justiça.

De facto, a democratização da escola envolve, e atravessa, todos os níveis (macro, meso, micro), da administração central à sala de aula, do organigrama do sistema escolar à organização do trabalho pedagógico, dos processos aos conteúdos, das regras formais às regras não formais e informais. A autonomia dos alunos não é insularizável na sala de aula ou em projectos de trabalho didáctico, nem passível de ser sistematicamente praticada e favorecida por professores fortemente controlados em suas práticas pedagógicas, através de uma concepção centralizada da organização pedagógica e do currículo, ou de uma prática educativa exclusivamente subordinada ao sucesso obtido em exames nacionais. A construção de uma escola democrática, para todos, aberta à diversidade sociocultural e promotora de uma educação multicultural, não é realizável apenas através de uma boa formação inicial e contínua dos professores (embora indispensável), ou de uma alteração mesmo que radical das práticas pedagógicas dominantes, deixando incólume as vertentes organizacionais e o poder da administração. A participação dos pais e de outros sectores comunitários não representa algo que apenas seja adicionável à actual organização escolar, para que melhorando-a ela permaneça, no essencial, igual àquilo que tem sido e que é.

A educação escolar para a democracia e a cidadania, só possível através de práticas educativas democráticas, é por natureza organizacional, tal como a organização e a administração escolares são, por definição, políticas, educativas e pedagógicas. Aqui reside, de resto, uma das mais importantes lições do pedagogo Paulo Freire; aquela que indubitavelmente conclui pela politicidade e pela pedagogicidade da organização escolar e da acção administrativa na escola. Torna-se por isso indispensável não ignorar que a organização e a administração educativas se constituem, desde logo, como pedagogia implícita (e como currículo oculto); o seu exercício, não sendo neutro ou meramente instrumental, promove valores, organiza e regula um contexto social em que se socializa e se é socializado, onde se produzem e reproduzem regras e se exercem poderes. Trata-se, assim, de uma acção extremamente exigente em termos políticos e éticos, a partir do momento em que lhe exigimos que acautele e promova o potencial democrático, de autonomia e de cidadania, de tolerância e de respeito activo pelos direitos humanos, que afirmamos que a escola comporta ainda, e sobretudo por comparação com a maioria das organizações sociais e formais do nosso tempo.

Porém, se é verdade que o aprofundamento das autonomias educativas se encontra muito dependente das acções concretas que os professores desenvolvem, isso não significa que as mudanças político-educativas possam, voluntaristicamente e heroicamente, ser apenas concretizadas por eles. Os docentes, e mesmo outros actores educativos, seriam dessa forma unilateralmente responsabilizados, ignorando-se os constrangimentos existentes, desprezando-se assimetrias de poder, homogeneizando-se objectivos e interesses e, simultaneamente, atribuindo ao Estado, aos governos e administrações, um papel pretensamente neutro. A autonomia das escolas não representa uma conquista digna de heróis, não é um prémio para actores performantes, nem uma aquisição resultante do merecimento de professores interessados e diligentes; não é, enfim, um acto de liberalidade dos governos, magnanimamente capazes de, finalmente, redistribuírem e devolverem poderes de decisão.

Pelo contrário, a redistribuição de poderes de decisão e a estruturação democrática de regras e de relações sociais de interdependência, de diálogo e de negociação, exigem uma intervenção activa de todas as partes envolvidas, projectos e vontades políticas. A autonomia democrática não é uma mera concessão, nem é aquisição exclusiva de professores para seu uso exclusivo; a autonomia da escola, no quadro da democratização dos poderes educativos, não resulta da intervenção unilateral e singular dos governos e das administrações centrais, tal como não é sinónimo de atomização da escola, de fechamento e de exercício solitário do poder por parte dos professores ou de quaisquer outros sujeitos isolados ou organizados exclusivamente segundo categorias ou estatutos homogéneos.

Creio, de resto, que isolados, os docentes dificilmente se sucederão na tomada da palavra nas escolas, enquanto acto de participação legítima nas decisões de política educativa e de partilha democrática dos poderes de decidir sobre questões educativas. Decisões com outros, e não sobre outros, procurando construir colectivamente regras e estruturas mais livres, justas e democráticas, um futuro mais próximo e mais inventável e manejável por parte dos actores educativos organizacionalmente localizados. Participando, na escola e em seu entorno comunitário, na construção de uma obra própria e não apenas na pressuposta reprodução de uma obra alheia, ou seja, co-construindo a escola democrática, produzindo regras e estruturas de autonomia em regime de co-autoria face a políticas, objectivos e interesses de âmbito nacional, regional ou local.

Também por essa via articulando política educativa e educação política, governo e administração escolares, autonomia e pedagogia, assim devolvendo centralidade educativo-pedagógica e político-administrativa à escola, como instância auto-organizada e locus de produção de políticas educacionais.

Políticas educacionais que sempre demandam suporte organizacional e acção administrativa; tal como as práticas de administração e gestão escolares, seja a que nível for, não podem escapar à condição de práticas de política educacional.

Tal como ficou claro ao longo dos trabalhos do II Congresso Luso-Brasileiro de Política e Administração da Educação, administrar a educação e gerir as escolas, tanto como ensinar, são tarefas político-pedagógicas, que implicam um trabalho educativo; e este não pode de facto existir sem opção política.

Licínio C. Lima
Universidade do Minho


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 99
Ano 10, Fevereiro 2001

Autoria:

Licínio C. Lima
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho
Licínio C. Lima
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho

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