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Emerenciano: o poeta e o pintor

Pintor de méritos consolidados e reconhecidos, Emerenciano é também cultor da palavra escrita. Em poesia, dá expressão àquela parte do seu mundo emocional, partilhada pela pintura, de que esta todavia não se reclama em níveis de mobilização excessivos. Mesmo existindo um compromisso entre palavra e cor, verso e traço, semiótica do texto e fulguração visual do signo, o artista reserva à poesia o canteiro do espírito onde ajardina a matéria sensível excedentária do rasgo pictórico. Matéria depois ordenada e encaminhada para as páginas dos livros através dos quais vai acumulando reputação de escritor.

Estamos em presença, provavelmente, de um homem dividido, de subjectividade fendida pelo raio fulminante de duas paixões – a escrita poética e a pintura –, que para elas procura estabelecer pontes de modo a criar fios harmónicos capazes de o salvarem dos desalinhos desse duplo preito. Por salvação entenda-se o desaparecimento da angústia vital que se diria submergi-lo enquanto poeta e da qual se resgata pela alegria da pintura. E se falo de “alegria”, isso não significa que o pintor possa estar inundado de contentamento enquanto trabalha. Quero dizer que a alegria emana do traço pictórico como resultado de uma atitude positiva ante as dificuldades do processo criativo, desde o seu início até ao fim. Contudo, unir as margens do grande rio que corre entre as duas vocações é, certamente, utópico projecto. E nem se afigura ser qualquer espécie de dialéctica a solução para o caso, visto não existir oposição rígida de contrários, mas antes pragmática boa vizinhança entre linguagens estéticas distintas.
Por outro lado, dir-se-ia haver no artista uma mal cicatrizada ferida narcísica, potenciadora da dispersão de nexos, que torna o poeta refém do pintor, em termos formais. Se se considerar que a pintura de Emerenciano é, na sua inspiradora sintaxe e no seu efeito de esplendor, poética, isto é, que se pode dar ao luxo de prescindir da palavra para ser tambémpoesia, talvez seja possível encontrar no peso que o texto escrito tem na obra do pintor o aceno magnânimo deste último ao vate em ascensão, como que delegando nele fatia considerável do seu prestígio.
Julgo não escandalizar ao defender que a poesia de Emerenciano beneficiaria com a maturidade (leia-se ênfase criadora) que a sua pintura exibe. Sobram, com certeza, ao poeta as qualidades que, bem traduzidas em palavras, levarão à superação esperada, mormente no registo tão português da amargura (veja-se o «Só», etc.): a vida interior sofrida; a morte omnipresente; o verso sibilino que dá resposta ao hipotético ou real cerco social hostil; o paralelismo com “o homem revoltado” em assumida afinidade camusiana; esse desgosto tão próximo do desassossego de Bernardo Soares que inquieta mais do que insubordina; o pendor para a censura austera aos que gravitam em torno da grande arte sem jamais cederem à tentação de a saborear.
A poesia de Emerenciano enjeita a referencialidade estrita, subtraindo-a à acomodação fácil à lógica das coisas. Se não tem na mira, que se vislumbrem, horizontes astrais, também não se fica pela superfície rasa. Tudo aponta para que o seu alvo se situe numa zona do ser – o chão secreto do “meu secreto ser” – governada por sombras, silêncios, às vezes raiva, outras vezes revolta, e ainda um fundo persistente de tristeza, talvez mais consequência de litígio com o social envolvente, alheio (ainda? talvez?) à especificidade da sua arte, do que resultado de improvável aliança da palavra escrita com as vibrações da coreografia estelar ou qualquer outra mediação de transcendência.
Da presunção de alguém que quer abarcar o mundo que o não abarca, emergem sintomas de crise existencial. O monólogo do sujeito briga com as realidades em trânsito nas cercanias. Ao mesmo tempo, os desesperos nem sempre contidos, soam, amiúde, indóceis. Apesar de subterrânea, e das tentativas de voo para as alturas serem no geral equívocas, por nelas estar previamente declarado o “regresso” à normalidade “decepcionante”, na querela psicológica de um desajuste social se vai mapeando a memória autobiográfica do artista.
Da lírica de Emerenciano brota um exasperado mal-estar ôntico materializado no verso curto, certeiro, pronto para o exercício do direito à indignação, e deste, sem dúvida, braço armado. É uma poesia protegida por um grande rigor na preparação da estrofe, a que se agrega a escolha de um vocabulário enxuto, veículo da clareza clássica, e cujo desafio principal é, talvez, encontrar para essas bem identificadas coordenadas estruturais mensagem capaz de pôr em causa a tirania da palavra e do seu reportório, jamais exaurido, de significados e representações.
Mas a palavra não deixa ao artista a liberdade de que ele desfruta na pintura, em que um discreto signo pode dar azo a múltiplas interpretações, associações, especulações, etc. A palavra escrita retém, exige, coage. No verso dilacerado entrevêem-se sinais da intranquilidade do poeta, ao validar a provocação deste a todo um historial do “contínuo”, do “antecedente” e do “consequente”, da “lógica diacrónica”, etc., que constitui também repto à poesia formalmente bem comportada, racionalizada no sentido da “compreensão” – do seu “triunfo prático”, para usar a oportuna definição de Eduardo Lourenço.
Neste último caso, o aparecimento espontâneo de conteúdos sem relação aparente entre si dinamita o local de encontro com o leitor. São contribuições para que uma certa incomodidade no acto da leitura vá juntar-se à depressiva alteridade do Mesmoe do Outro, lá onde se recupera como eco persistente a intromissão do verbo crispado, remetendo para um sarcasmo fruto da sua própria circunstância.
Em alguma da poesia ainda inédita do autor, a que tive acesso, assiste-se uma vez mais ao jogo das perplexidades do homem que cumpre novo segmento da viagem ao fim da (sua) noite, deixando vislumbrar desejos só parcialmente realizados ou quiméricos anseios por alcançar. De uma maneira ou de outra, o sentimento trágico da existência manifestado através de persistente interrogação sobre o que falha na procura “da similitude”, e acerca dos “tus da conveniência” que esmagam os “tus da procura essencial”, ou a busca na pureza da infância do alento “para sustentar a criança que me habita”, ou ainda a premonição da herança possível na morte “quando já sepultado / começa a descarnação / para deixar a única / fortuna indesmentível / do meu corpo / ossos”, projectam no leitor a imagem de um ser amargurado, entregue à interpelação que isole e esclareça as causas da sua solidão.
Correlacionando a poesia de Emerenciano com a sua pintura, coloco-me, quanto a esta – com toda a humildade – na posição do receptor atingido pelo prazer da descoberta de algo que simultaneamente arrebata e apazigua. Sim, a pintura de Emerenciano apela para sensações festivas e para a reflexão sobre as intertextualidades tonificantes que nesta matéria são legíveis. A fruição estética aliada à gratidão que, pela sua finura e requinte, ela suscita, é a quota mínima do que é lícito manifestar em sinal de apreço e congratulação.
Por este flanco irrompe a contradição maior – e fascinante – de um discurso poético pesaroso, alternando com uma pintura de delicado traço que é celebração perfeita do júbilo: cores tépidas e confortáveis, visualidade exuberante, subtis aberturas, no quadro, à palavra escrita, fixando na tela, como confissão feliz, a lealdade do autor às formas de arte predilectas, aqui em interlúdio cordial de comunicação, numa entreajuda empenhada na exaltação da beleza que põe à mostra o lado solar de um “outro” Emerenciano.
O que acrescentará a poesia de Emerenciano à pintura de Emerenciano enquanto disciplinas intrínsecas ao carácter do artista, é enigma ainda por resolver. Para já, fica a pairar a ideia de que a pintura emerenciana se instalou num patamar de excelência, apreensível, por exemplo, nas emoções e sensações que provoca. E que a poesia emerenciana ainda não fechou o capítulo do seu crescimento; quando atingir o zénite, então se verá até que ponto e para que paragens evoluiu esta impressionante alteridade.

Júlio Conrado

Escritor


  
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Edição:

Edição N.º 188, série II
Primavera 2010

Autoria:

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