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Novo regime é “um retrocesso no funcionamento democrático da escola pública”

Manuela Mendonça é coordenadora do Departamento de Política Educativa do Sindicato dos Professores do Norte e membro do Secretariado Nacional da Federação Nacional de Professores. Nesta entrevista, faz o ponto de situação da implementação do novo regime de autonomia e gestão das escolas e explica porque razão os sindicatos estão contra o novo diploma.

Qual é, em síntese, a opinião da Fenprof face ao novo regime de autonomia e gestão das escolas? 

A Fenprof considera que ele representa um retrocesso no funcionamento democrático da escola pública. É um regime que faz regressar a figura do director às escolas portuguesas, numa lógica de recentralização de poderes, assente numa clara cadeia de comando que começa nos serviços do ME e acaba nos coordenadores das estruturas pedagógicas intermédias.
Para o Governo, este modelo é uma peça fundamental para a consolidação de uma concepção de escola coerente com a concepção de professor que o novo Estatuto da Carreira Docente (ECD) configura. Para garantir professores obedientes e acríticos, há que reduzi-los à dimensão de funcionários, controlando fortemente a sua actividade. Isso não se compagina com a democracia na direcção e gestão das escolas.  

Que aspectos consideram mais negativos? 

A imposição de soluções únicas a todas as escolas, retirando-lhes os poucos espaços de autonomia de que dispunham ao nível da sua organização interna; o fim de vários processos eleitorais, restringindo a participação dos actores escolares na direcção e gestão da sua escola; o fim da tradição de colegialidade na gestão escolar do pós 25 de Abril, impondo a todas as escolas um órgão de gestão unipessoal, seleccionado através de um processo híbrido de concurso e eleição; a concentração de poderes de decisão no director, último elo da cadeia hierárquica do Ministério da Educação (ME) em cada escola.
O director condicionará todo o processo de avaliação, nomeará coordenadores de departamento, de conselho de docentes e de estabelecimento, seleccionará e recrutará o pessoal docente nos termos dos regimes legais aplicáveis e decidirá a colocação dentro dos agrupamentos de escola.
Supostamente, esta concentração de poderes pretende dar ao director meios para que ele possa “desenvolver o seu projecto”. Mas não é o projecto educativo da escola – para cuja concepção, desenvolvimento e avaliação se convoca a participação da comunidade educativa representada no Conselho Geral - que compete ao director executar e fazer executar? Estamos, enfim, perante a consagração de uma espécie de autonomia do chefe, em detrimento da autonomia da escola.  

Que implicações tem essa autonomia do chefe, como refere? 

Quando o horário e local de trabalho, a avaliação e a carreira dependem da decisão de um chefe, é melhor pensar duas vezes antes de fazer seja o que for que o possa contrariar… Quanto mais dependentes estivermos, mais condicionados nos sentiremos.
Numa Conferência organizada no âmbito da segunda Presidência Portuguesa da União Europeia, em 2000, a representante do Governo sueco, fazendo o balanço de dez anos de um programa de reforço da autonomia das escolas no seu país, concluía que este ia ser revisto porque em vez de contribuir para aquele objectivo, tinha, afinal, reforçado a “autonomia do chefe”, constatando-se que a desejada maior participação dos actores escolares não tinha acontecido e que, pelo contrário, os professores intervinham cada vez menos na vida da escola.
Já para o Governo português, a preocupação é retirar espaços de intervenção e de participação aos professores. Subjacente a esta alteração legislativa, como a outras, está uma desconfiança, quase obsessiva, em relação à classe docente. Estranha ideia esta de quem nos governa, de que no sistema educativo português há dois interesses inconciliáveis: de um lado o dos professores, do outro o das escolas e dos alunos...

Esta é uma matéria em que as diversas organizações sindicais estão de comum acordo - tal como aconteceu recentemente relativamente a outras questões - ou há posições divergentes? 

Sobre esta matéria, não há posições comuns. A Plataforma Sindical constituiu-se como uma frente de luta contra o ECD mas, mesmo a este nível, a convergência está mais no que se recusa e não tanto no que se propõe. Por exemplo, relativamente à avaliação do desempenho, todos os sindicatos recusam o modelo imposto pelo ME, mas propõem em alternativa soluções diferentes. Enquanto a Fenprof defende uma avaliação entre pares, participada e co-construída pelos próprios professores, a FNE defende uma avaliação externa.
Relativamente à  gestão das escolas, a Fenprof e a FNE têm há muitos anos posições diferentes sobre várias questões. Por exemplo, em relação à unipessoalidade do órgão de gestão. Por essa razão, não foi possível uma convergência de posições no âmbito da Plataforma. 

De que forma têm reagido, em geral, as escolas e os professores a este processo? 

O facto de esta alteração legislativa ter coincidido com a implementação do modelo de avaliação do desempenho retirou centralidade e prejudicou o debate sobre o novo regime. Basta ver que o processo de selecção do director ocorre no meio de um ano lectivo que ficará para a história como um dos mais conturbados na educação em Portugal. Um ano em que os professores fizeram a maior manifestação e a maior greve de sempre. 

Isso significa que os professores não se envolveram na implementação do modelo? 

Não, os professores acabaram por intervir no processo, mas fizeram-no centrando a sua preocupação não no modelo e no que ele representa, mas essencialmente nas pessoas, no perfil dos candidatos ao cargo de director. De acordo com os contextos, ora se mobilizaram para garantir que o anterior presidente do conselho executivo se candidatava, ora procuraram encontrar um candidato que constituísse uma alternativa ao anterior detentor do cargo.
Há um número significativo de directores que se candidataram por pressão dos colegas ou de outros elementos da comunidade escolar e que têm manifestado publicamente a sua discordância relativamente ao modelo. Mas independentemente das pessoas que ocupem os cargos e da preocupação que possam ter em atenuar os efeitos negativos daí decorrentes, o que está em causa é a configuração do modelo e as suas implicações. Muitos professores só agora se começam a aperceber disso. 

O processo de selecção do director está terminado em todas as escolas? 

Na grande maioria das escolas sim, mas há ainda escolas onde o concurso não foi aberto e outras em que os processos de selecção se arrastam há meses. Mas apesar de ainda estar em fase de instalação, os efeitos negativos da aplicação do decreto-lei 75/2008 são já visíveis em muitas escolas. 

Que efeitos são esses?  

Para além de irregularidades processuais várias, algumas objecto de acções judiciais, o que me parece mais relevante é um acréscimo de conflitualidade, a deterioração do clima de escola e a partidarização da gestão escolar. E aqui há situações muito diversas que vão de pressões e tentativas de manipulação de membros dos Conselhos Gerais Transitórios para votações favoráveis a determinado candidato, ao controlo de todo o processo pelo poder autárquico, em função de interesses político-partidários.  

Que diligências tem efectuado a Fenprof junto dos restantes partidos políticos com assento na Assembleia da República no sentido de reverter este diploma? 

A Fenprof editou recentemente o Livro Negro das Políticas Educativas do XVII Governo Constitucional, com o qual procura contribuir para a avaliação das reformas impostas nesta legislatura e que tem vindo a apresentar aos partidos políticos concorrentes às próximas eleições, tendo em vista a assunção de compromissos que permitam corrigir essas políticas.   

Que receptividade tem obtido e que compromissos conseguiu? 

Estas reuniões ainda estão a decorrer. Há receptividade dos partidos à esquerda do Partido Socialista para reverter este processo, caso venham a estar em condições de influenciar a próxima governação. Temos consciência de que à direita vai ser mais difícil obter compromissos nesta área, porque o que este regime consagra são, no essencial, as propostas do PSD.
Apesar de não surpreender, não deixa de ser irónico que o Governo de José Sócrates altere a legislação do Governo de António Guterres, com as propostas do PSD. A única diferença, que assinalo e não desvalorizo, é que para o PSD o director pode não ser um professor. Tudo o resto é decalcado do que este partido tem vindo a defender, pelo menos desde o início dos anos 90.

Independentemente destes contactos e dos seus resultados, que outras iniciativas irá tomar a Fenprof no sentido de fazer recuar o Governo? 

No plano jurídico, e com base num parecer do ex-Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional Guilherme da Fonseca, estão em curso duas iniciativas: um pedido da fiscalização sucessiva e abstracta da constitucionalidade do diploma e um requerimento ao Ministério Público para que proceda à interposição de acção de impugnação de normas por ilegalidade.
No plano político, a Fenprof intervirá junto do próximo Governo, contestando a necessidade e a oportunidade desta alteração legislativa, assim como a validade das soluções impostas. Continuará a procurar as melhores soluções para a governação democrática das escolas e a bater-se por um ordenamento jurídico que respeite a sua autonomia, que promova dinâmicas participativas, que consagre a elegibilidade dos órgãos e a colegialidade do seu funcionamento, em suma, que reforce a democracia nas escolas. 

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo

 
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Edição:

Edição N.º 186, série II
Outono 2009

Autoria:

Manuela Mendonça
Coordenadora do Departamento de Gestão e Avaliação do Sistema Educativo do Sindicato dos Professores do Norte
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Manuela Mendonça
Coordenadora do Departamento de Gestão e Avaliação do Sistema Educativo do Sindicato dos Professores do Norte
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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