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O regresso dos "porquenãos"

Numa das "Cartas à Alice", expliquei à minha neta que "os porquenãos assim se chamavam por não saberem explicar por que faziam o que faziam - era assim porque era assim... e pronto!". A Alice entendeu. Mas ainda há quem não tenha entendido. Para quem não sabe o que são porquenãos, direi que são criaturas que padecem de pensamento único, enfermidade dificilmente detectável a olho nu.
A lista das doenças que afectam as escolas é extensa. Referirei algumas.
O "modismo" caracteriza-se pela adopção acéfala de modas pedagógicas, quase sempre importadas. Associado ao "aventureirismo pedagógico" e ao "praticismo", o "modismo" foi (e ainda é) responsável por transtornos vários e graves sequelas.
O "teoricismo" (doença antípoda do "praticismo") afecta parte significativa de uma universidade ancilosada. Os enfermos produzem inúteis teorizações de teorias inúteis, produzidas sobre teorias de teóricos que não fazem a mínima ideia das práticas sobre as quais teorizam. No aconchego dos seus gabinetes, os afectados pelo "teoricismo" desenvolvem sofisticadas propostas teóricas, que não logram fertilizar as práticas, dado que a "impotência prática" é um dos sintomas associados a esta maleita.
A "síndrome do pensamento único" consiste num conjunto de afecções patológicas muito comuns em opinion makers e professores. Para estes doentes existe um só modo de pensar, um só modo de agir, um só modelo de escola. Todo o pensamento divergente, toda a prática dissonante os impele a reacções violentas (quase sempre, por escrito). Publicam artigos de opinião, ou meros comentários, em tom persecutório. Quem ousar interpelar o modelo único, sugerir alternativas, ou instituir outras práticas, sofrerá a perseguição feroz de hordas de porquenãos, porque o pensamento único não permite veleidades.
Muitos jornalistas e professores porquenãos manifestam uma particular predilecção por desdenhar daquilo que chamam de "novas teorias das ciências da educação". Na opinião dos porquenãos, essas "teorias" são a causa dos males que afectam o sistema educativo. Porém, se perguntarmos aos porquenãos quais são essas nefastas "teorias", eles não saberão responder, porque só sabem falar de ouvido e entoam sempre a mesma cantilena. Provavelmente, se conhecessem alguma teoria e a tivessem estudado, não saberiam entendê-las, dado que o diletantismo e o dogmatismo ? sintomas associados à síndrome do pensamento único ? são causadores de uma espécie de cegueira, que os impede de vislumbrar horizontes vários, além do seu restrito quadro de referências. Quem não consegue sair de um quadro de referências limitado não entende discursos e práticas divergentes. Quando falo da possibilidade de as escolas darem resposta educativa a todos, não estou a referir-me às escolas que funcionam nos moldes em que funcionavam há um século. Refiro-me a escolas que, por exemplo, dispensaram a subdivisão dos alunos por turmas, que abandonaram práticas de avaliação selectiva e aulas dadas para "alunos médios" imaginários. Refiro-me a escolas que substituíram a tralha tradicional por dispositivos pedagógicos e práticas que derrubaram obstáculos à inclusão. Sei que é possível "concretizar utopias". E que não há um só modo, mas haverá vários modos de as "concretizar"?
Poderia falar-vos de outras doenças profissionais pouco estudadas, de que as teses sobre stress e mal-estar docente são meros sucedâneos. Poderia falar-vos da mesmice, do isolacionismo, do corporativismo, da burocratização, do ensimesmamento, do fundamentalismo pedagógico, etc. Mas não me sobra espaço. Remeto o leitor interessado para um "Pequeno Dicionário dos Absurdos da Educação", que, em breve, será publicado.
Quem escreve expõe-se. Mas continuarei a expor-me e a dizer o que é preciso que seja dito. E, dada a diversidade e riqueza de "comentários" recentes, abrirei uma excepção à regra, para fazer dois brevíssimos? comentários.
Creio que aqueles que me rotulam de "teórico" o fazem por falta de informação. Fui sempre um professor na prática. Nos últimos trinta anos, fui professor numa escola que provou ser possível dar resposta educativa a todos, inclusive, àqueles a quem chamam "deficientes". Essa escola é, hoje, referência de qualidade em todo o mundo. Mas, num país pequenino, não se pode perturbar a mediocridade instituída. Talvez por isso, a maldade de "certos professores a quem não se pode fazer certas perguntas" se tenha abatido sobre essa escola e encha a Internet de comentários jocosas. Que os deuses se compadeçam e lhes perdoe!
O derradeiro comentário é este: escrevo para os que não padecem de pensamento único. Escrevo porque acredito nos professores e no seu potencial de mudança. Tenho os professores na mais elevada consideração. Orgulho-me de ser professor. E há muitos professores que merecem o meu respeito, pelo seu empenho profissional e a sua dedicação. É a eles que ofereço o meu tempo de escrita solidária, é para eles que dirijo o meu pensamento. Não perco tempo a pensar nos cínicos.

José Pacheco


  
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Edição:

N.º 175
Ano 17, Fevereiro 2008

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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