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Volto já!...

Contava a professora que hoje lhe tinha acontecido uma coisa algo inédita na sua já longa carreira de trabalho no secundário. Dera-se o caso de um aluno do décimo primeiro? aliás, um rapaz que até lhe parecia atinadinho? ter desaparecido da sua carteira da sala de aula e no seu lugar ter deixado um bilhete com estes dizeres? volto já. Estava agora a falar descontraidamente com um colega lá ao fundo da sala. 
Apanhada por esta súbita inovação, a primeira reacção da professora foi apenas olhar, entre o estupefacto e o divertido, para a situação criada na expectativa de que o autor da cena se voltasse para trás para, eventualmente, se aperceber do efeito e rapidamente se desse conta da irregularidade em curso e lhe pusesse cobro. Esperanças baldadas.
A conversa prosseguiria calmamente se não fora a intervenção da professora. E pelos vistos, prosseguiria com toda a "legitimidade" a acreditar na explicação apresentada pelo aluno: é que era justamente para poder deslocar-se com toda a confiança e transparência que o papel do "Volto já" fora colocado. Na sua opinião, este recurso era muito mais prático e muito menos perturbador tanto para ele, como para a professora, do que seria o processo tradicional: levantar-se, dirigir-se à professora, pedir licença para ir falar com o colega, justificar o pedido, alcançar autorização (ou não) e, finalmente, deslocar-se.
O episódio referido é verdadeiramente eloquente do ponto de vista das transformações por que está o mundo da escola e que, em síntese, se podem enunciar segundo três ordens de razões:
- uma primeira ordem corresponde à dissociação entre o plano institucional da escola e a ordem das práticas sociais comuns.
Na verdade, tudo se passa na prática social escolar com se o processo de socialização quotidiana fosse independente do processo de integração da população escolar num contexto de vida onde os procedimentos colectivos deveriam alcançar algum sentido pedagógico, designadamente o da supremacia do bem comum sobre o bem particular. No episódio referido, a vida na sala de aula em nada se distingue da vida vivida num espaço pessoal, gerido individualmente e, nesta perspectiva, a lógica adoptada pelo aluno até revela, paradoxalmente, algumas preocupações de tipo ético, como seja a de poupar os outros a possíveis perturbações, a ter em conta a argumentação que utiliza...
Uma segunda ordem de razões implica, igualmente, uma dissociação entre a exigência crescente dos processos e produtos cognitivos e uma prática metodológica de "ensinagem", como diria J.A Correia, cada vez mais dependente de poderosos circuitos comerciais e esquemas pessoais (domínio quase absoluto dos interesses editoriais e do reino das "explicações"), onde a presença da escola é cada vez mais marginal e acidental e as suas funções cada vez mais instrumentalizadas no sentido de se verem reduzidas a agências de acreditação e verificação oficial de resultados.
Uma terceira ordem de razões, com uma particular incidência no processo de erosão da identidade profissional dos professores, deriva da perda acentuada do carácter de referência simbólica da figura dos professores, cada vez mais destituída da sua condição institucional à medida que os novos modelos de gestão político-organizacional e de "militância empresarial" a reduzem à condição de prestação de serviços. Nesta qualidade, a figura do professor é reduzida sumariamente à função de recurso ao serviço dos interesses dos alunos e das suas famílias (algumas, é claro), como, aliás, é visível na retórica oficial e na respectiva documentação de apoio e como já transparece na linguagem "desempoeirada" de alguns alunos, sobretudo daqueles que mais próximos estão da "nova cultura empresarial". É exemplar a esse propósito a observação daquele aluno, apontada directamente à professora, que lhe exigia mais atenção para não se ver obrigada a repetir sempre a mesma coisa: "A stora é paga para nos ensinar".

Manuel Matos


  
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Edição:

N.º 174
Ano 17, Janeiro 2008

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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