Há cerca de dez anos, a Comissária Édith Cresson esboçou o programa para uma das primeiras figurações do espaço educativo europeu. Aí, a formação ao longo da vida aparecia equacionada como uma política preocupada com a coesão social em que o laço social era um desígnio largamente sublinhado. Mas, a exemplo do que acontecia em Ensinar e Aprender. Rumo à Sociedade Cognitiva, a ênfase recaía sobre a trilogia de mudanças, de regime, institucional e biográfica, ao referir: que aprender a aprender em permanência é atributo de cada indivíduo adquirido na educação inicial; a preocupação de desenvolver abordagens mais abertas e flexíveis e instrumentos de avaliação e acreditação de conhecimentos e competências para encorajar a formação ao longo da vida; a cultura geral e a aptidão para o emprego como a resposta da Europa à sociedade da informação, mundialização das trocas e aceleração das ciências e técnicas. Como se pode verificar, é notória a sugestão de alteração das instituições educativas (as modalidades, os dispositivos, os processos, os produtos); das trajectórias biográficas; dos nexos com/entre a formação e o trabalho e do pacto e balanço entre os poderes e as responsabilidades públicas sociais e colectivas e as atribuições individuais e de âmbito privado (1). Se analisarmos alguns dos mais recentes documentos-programa da UE, é interessante notar que, quando considerado o conjunto dos temas e propostas acolhidos nos diversos documentos: - a aprendizagem ao longo da vida (ALV) apresenta-se como instrumento de mudança dos sistemas de educação e formação no quadro de um novo pacto estado-sociedade civil, com deslocação de atribuições e responsabilidades do primeiro para a segunda; - a ALV nos aparece também como um projecto de governação de territórios, populações e sujeitos e uma necessidade estrutural nas sociedades actuais. Nestes documentos, são ainda acentuadas as conexões com políticas económicas (e de emprego) enquanto as preocupações sociais dificilmente excedem a reparação do laço social. Surgem também destacadas novas institucionalidades em educação: estas aparecem maioritariamente centradas nos encontros dos indivíduos com as ofertas e oportunidades de aprendizagem, descurando a responsabilidade de actuação do estado através de projectos colectivos de intervenção nos mecanismos de alocação social. A sustentação da economia do conhecimento e a reparação do laço social são vectores determinantes, porquanto a preocupação com as segundas oportunidades e a prevenção ou acção face ao risco social vincam bem a tónica na dimensão assistencialista da educação e formação como política social (2). Por outro lado, em Portugal, o panorama apresenta-se cheio de rugosidades e sombras, sendo de destacar duas orientações: uma que procura articular e negociar aspirações de educação permanente de adultos, de desenvolvimento local e comunitário e de cidadania participativa, integrando a economia, o emprego, a qualificação como dimensões essenciais da vida individual e colectiva; a outra, que sublinha preocupações com os défices de certificação escolar e qualificação profissional, as políticas de emprego e "o desenvolvimento e integração de jovens e adultos e (?) as vulnerabilidades estruturais do País" (despacho conjunto MTS/ME nº 262/2001). A primeira orientação informa, por exemplo, intervenções, documentos e programas do Grupo de Missão para a Educação e Formação de Adultos, responsável pela criação da ANEFA e pela proposta do sistema de reconhecimento, validação e certificação de competências (SRVCC) (3); a segunda desenvolve-se sobretudo nos documentos oficiais e normativos legais da autoria da administração central. Estas duas orientações partilham e estão até hoje activas nas políticas, programas e práticas de educação e formação ao longo da vida, constituindo duas comunidades interpretativas e de acção com influência e modos de intervenção próprios. De momento, designamos a primeira como uma política social multidimensional enquanto consideramos a segunda como uma política para/segundo a economia. A evocação de alguns momentos e aspectos dos processos de lançamento da ANEFA e do Sistema de RVCC são suficientes para sugerir a hipótese de que estas duas orientações se combinaram e conflituaram desde, pelo menos, 1998 em Portugal. Entendemos, por outro lado, que este percurso foi marcado pela progressiva migração da primeira orientação, desde uma presença transversal a diversos níveis do sistema até aparentemente uma acantonação à presença resistente no terreno de acção e do debate, com perda clara de influência na decisão central. Assim, segundo Alberto Melo, a ligação às comunidades locais, a participação e a mobilização dos actores sociais locais constituíram referências importantes para definir as entidades acolhedoras dos Centros de RVCC, na convicção de que tais condições favoreceriam o desenvolvimento de práticas e metodologias promotoras da educação ao longo da vida (4). Hoje, no entanto, os activistas de práticas da educação/aprendizagem ao longo da vida referenciáveis a uma política social multidimensional parecem deter uma presença diminuída, de resistência e em franco retrocesso, tendo em conta o processo de ampliação desmesurada de certos sistemas e ofertas (SRVCC e sistema de ensino profissional ou oferta de Cursos de Educação e Formação em variados contextos institucionais) na desesperada tentativa de cumprimento das metas estatísticas. Assim, desde 2005, parece delinear-se um percurso com muitas continuidades face ao anterior, mas também intervenções e cursos de acção suficientemente distintos para que se possa considerá-lo autonomamente. Por exemplo, o lançamento da Iniciativa Novas Oportunidades e a neófita Agência Nacional para a Qualificação criam um quadro onde a regra qualificacionista, ameaça deixar muito pouco espaço para que as acções desenvolvidas neste âmbito possam acolher e desenvolver outras lógicas que não a de constituir e avaliar um catálogo de competências ou uma carteira de créditos: "uma iniciativa integrada para a qualificação da população e a criação de competências para as empresas, intitulada "Iniciativa Novas Oportunidades", visando adequar a formação inicial dos jovens aos desafios e às necessidades do País, apostar na certificação e na requalificação de activos, reforçar o ensino tecnológico e investir mais e melhor na aprendizagem ao longo da vida" (5). O conflito entre posicionamentos tornou-se mais vincado e, nesse sentido, a ambivalência e a compatibilização de orientações estará (?) em vias de metamorfose ou desvanecimento. Por seu lado, a Iniciativa Novas Oportunidades definiu ambiciosos alvos, com um calendário e um processo de produção bem claros para os rebaptizados e os numerosos recém-criados Centros Novas Oportunidades. Não parecem restar grandes dúvidas de que o Plano Tecnológico que lhe dá guarida e a produtividade que lhe é exigida ("qualificar 1 000 000 de activos", dos quais cerca de 860 000 entre 2007 e 2010 - 300 000 através de Cursos de Educação e Formação de Adultos e 560 000 no âmbito do Sistema de RVCC (6) constituem imagens emblemáticas da sua forte vinculação às políticas económicas (e de emprego) e a bem mais lassa filiação em preocupações sociais; a forte determinação técnica exibida pela concepção do programa é aqui um poderoso facto político: as metas estatísticas constituem o alfa e o ómega, a verdade, da política e é essa particular abstracção da realidade dos processos sociais implicados que parece impor novos sentidos para a educação/aprendizagem ao longo da vida em Portugal. A submissão e a redução da política de educação/aprendizagem ao longo da vida (E/ALV) à regra da qualificação, a vocacionalização do insucesso e do abandono escolares de mãos dadas com a desvalorização do trabalho, a perseguição obcecada das metas estatísticas assomam como faces dos modos de apropriação e construção do objecto político-cognitivo E/ALV, entre nós e por parte dos decisores de topo e dos programas que esses actores desenham e assumem. Eis ainda alguns dos modos como os processos de europeização articulam especificidades das realidades portuguesas, elos duma cadeia que precisa ser seguida com insistência e lucidez.
Notas:
1) Consultar Édith Cresson (1996),"Pour un espace éducatif européen" (entrevista). Pôle Sud, nº 5, pp. 22-25. 2) Consultar, por exemplo: Conselho Europeu (2002). Resolução de 27 de Junho de 2002 sobre aprendizagem ao longo da vida (2002/C163/01). Official Journal of the European Communities de 9 de Julho de 2002, disponível em http://europa.eu.int/eur_lex/pri/en/oj/dat/2002/C_163/C_16320020709en00010003.pdf, consultado em 14 de Março de 2006; Comissão Europeia (2002). Educação e Formação na Europa: sistemas diferentes, objectivos comuns para 2010. Luxemburgo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias; Decisão 2006/1720/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de Novembro de 2006 que estabelece um programa de acção no domínio da aprendizagem ao longo da vida. Jornal Oficial da União Europeia, L 327 de 24.11.2006, consultado em 23 Fev 07. 3) Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos, entidade autónoma exclusivamente votada a uma política pública de educação de adultos, criada pelo decreto-lei nº 387/99 de 28 de Setembro. 4) Conferir Alberto Melo (2006), "From the hills of the Algarve to the minister desk", in Adult Education. New Routes in a New Landscape, organizado por Rui V. Castro; Amélia V. Sancho & Paula Guimarães, Braga: Unidade de Educação de Adultos/Universidade do Minho, pp. 167-188. 5) Conferir "Estratégia de Lisboa. Portugal de Novo. Programa Nacional para o Crescimento e o Emprego (PNACE 2005/2008). Relatório do 1º ano de execução", p. 7 (2006). Disponível em http://www.dgeep.mtss.gov.pt, consultado em 12 de Junho de 2007. 6) Conferir http://www.min-edu.pt/ftp/docs_stats/n_1127387587500.pdf, consultado em 4 de Abril de 2007.
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