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Confesso que não vivi

... a vida e a verdade são sempre invenção: é uma questão de preferência inventar verdades que caminham para o novo, para o grande, para a frente, ou as que puxam para baixo e para trás.

Ler livros como os de Rui Castro (Chega de saudade), Joaquim Ferreira dos Santos (1958: o ano que não devia ter terminado), Nelson Motta (Noites cariocas), e assistir filmes como Coisa mais linda e Vinícius, que, mais  do que documentários, são passaportes para a crônica e o clima de uma época, me dão sempre a sensação de que nasci atrasada; tenho saudade de um tempo que não vivi.
Gostaria de ter aproveitado um pouco desse tempo em que se podia ser contemplativo: a isso se denominava reflexão e não lerdeza; em que, para remediar a tristeza, eram mobilizados os amigos e, se necessário, uma espécie de farroterapia para uma operação resgate da fossa, e não um psiquiatra e anti-depressivos; em que crise existencial era sinal de inteligência, sensibilidade, ou mesmo frescura, mas raramente de fraqueza ou incompetência; em que dor de cotovelo era afogada no uísque, ou tragicamente ridicularizada até sua extinção, ou triunfava em reconciliações mal sucedidas e transas inesquecíveis, mas tinha licença de existir, desavergonhadamente, entre os sentimentos mais nobres.
Um tempo em que a amizade era remédio, tratamento e cura, coisa pra todo dia, e não raridade, tema de tese sobre modos de sociabilidade. E amigo podia ter defeito, mudar de cidade, fazer besteira; se fosse solidário, se compartilhasse desaforos e silêncios de reconciliação, ou se apenas tivesse bons afetos pra trazer, se fosse , enfim, um  bom amigo, na hora H continuava amigo.
Li  a afirmação de um escritor, que ambientou seu último romance no Rio dos anos 1920, que esse apego ao passado, essa nostalgia é medo do futuro, reflexo da escassez de perspectivas que experimentamos no mundo contemporâneo. Pode ser. Mas nosso problema é: já que não temos a máquina do tempo, como enfrentaremos esse temor?
 Ferreira Goulart, no filme Vinícius, nos lembra que a vida e a verdade são sempre invenção: é uma questão de preferência inventar verdades que caminham para o novo, para o grande, para a frente, ou as que puxam para baixo e para trás.
Segundo ele, ?Vinícius ajuda a viver?, e ele ajudou o povo brasileiro a viver em anos de depressão, censura e ditadura. Por isso, Chico Buarque, por sua vez, afirma que Vinícius, e tudo o que representa, faz falta, embora talvez não tivesse lugar nos dias de hoje. A exuberância de sua sensibilidade e rebeldia pedia expressão, movimento, uísque e calma. Coisas que ele sempre teve - mesmo à custa de desarrumar algumas vidas à sua volta e sua também.
 Mas o filme não fala da nostalgia de uma falta, de algo que não podemos mais ter; fala da saudade de coisas que estão ausentes porque sua presença exige coragem e pulso forte para dar-lhes visibilidade, encontrar suas novas formas de aparecer. Fala da arte, do amor e do humor como afirmação da vida.
Faz realçar as inúmeras vezes em que poderíamos ter contado com a amizade ? talvez não com aquele amigo ou aquele parente ? mas com a atitude amiga generosamente sugerida por pessoas próximas em algum momento. O que impede esse usufruto é a crença num único modelo de amizade, cujo fantasma ofusca outras formas de solidariedade e cumplicidade.
Não quero contribuir para a invenção de que não temos futuro; prefiro ajudar a inventar esse presente em que muitos de nós somos afetados pelas emoções de um filme, da poesia e de outras vidas que, assim,  passam a fazer parte da nossa. Prefiro então dizer: confesso que não vivi...ainda.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 152
Ano 15, Janeiro 2006

Autoria:

Sandra Cabral Baron
Mestra em Educação, Doutora em Saúde Coletiva, Professora pesquisadora da UFF e FIOCRUZ, Psicóloga
Sandra Cabral Baron
Mestra em Educação, Doutora em Saúde Coletiva, Professora pesquisadora da UFF e FIOCRUZ, Psicóloga

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