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Laurinda e a guerra

Enquanto uma iraquiana estendia roupa em Bagdad, dona Laurinda assistia na cama à guerra ?em directo? pela televisão. As olheiras serviam de prova para quem a quisesse ouvir contar no autocarro o quão atormentada fora a sua noite. ?Não dormi quase nada?, desabafou com um choro nos olhos. ?Só de pensar naquela gentinha a ser bombardeada!? Com as pálpebras semi-cerradas dona Laurinha levou as mãos ao coração. É lá que desde os 73 tem colocado um pace-maker. ?Até sinto aqui um aperto.?
As sirenes já se haviam calado lá longe no Iraque e dona Laurinda ainda remoia entre os lençóis. Mesmo depois de desligada, as imagens da televisão não a deixaram adormecer tranquilamente, como de costume. Entre os passageiros do autocarro havia quem se queixavasse do mesmo. Dona Laurinda sentiu-se compreendida e aproveitou a empatia para atirar o que lhe ia na alma sobre a guerra: ?Isto é tudo fruto da ambição do Homem.? Mas alguém não percebeu de quem exactamente é que dona Laurinda falava. ?Do Bush ou do Sadam??
Sem dar importância à questão da identidade do Homem, dona Laurinda encolheu os ombros. Os olhos, entretanto já secos, tinha-os pousado numa parede coberta de cartazes. Neles uma caricatura americanizada do primeiro-ministro apelava: ?Preciso de ti!? Depois de um demorado suspiro Dona Laurinda retirou os olhos da parede e encarou os passageiros sentados à sua frente: ?Eu precisava era de dormir!?
Enquanto a roupa secava em Bagdad, Dona Laurinda imaginara a guerra à porta de sua casa misturando imagens retiradas dos noticiários. Ouviu as sirenes que anunciavam os bombardeamentos durante a noite. Sentiu desmoronar os prédios próximos da sua casa. Assustou-se. Viu o filho beijar-lhe as mãos e partir de kalasnicov ao ombro. Consolou os netos pequenos que não paravam de chorar. Saiu à rua já de dia. Só viu destroços. E pó. ?Será que aquelas máscaras anti-gás dos israelitas servem para respirar entre o pó?, pensou fazendo uma pausa na guerra imaginada. ?Ou só se usam em caso de ataque biológico?? Como não sabia a resposta, dona Laurinda achou melhor imaginar que tinha as tais máscaras em casa. Uma para ela, outra para a nora e mais duas para os netos. Talvez fosse prudente ter ainda mais uma extra, não fosse alguma se estragar. De volta à guerra dona Laurinda imaginou o perigo que correria caso um míssil skud errasse o alvo e atingisse a sua casa. Temeu pela vida dos netos. Mas talvez a família tivesse sorte. E nessa altura já estivesse a salvo num bunker. Ou então num campo de refugiados. ?Mas como é que chegavamos lá?? A dúvida obrigara-a a mais uma pausa imaginativa. E por que desta vez não arranjara uma solução para o impasse dona Laurinda decidiu pôr fim à história. E começou a rezar. Ao fim de quatro voltas ao Terço adormeceu.


  
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Edição:

N.º 122
Ano 12, Abril 2003

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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