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A Problemática da Autonomia das Escolas

- No ordenamento jurídico da Reforma Educativa as orientações e o balizamento no sentido das várias autonomias das escolas (pedagógica, cultural, administrativa e financeira quantum satis) constituíram matéria aflorada e relativamente bem configurada mediante o Dec.-Lei 43/89, de 3 de Fevereiro. Como é sabido, este diploma jurídico não foi regulamentado posteriormente, nem, muito menos, urgido, na prática quotidiana das escolas, enquanto instituições educativas dependentes do ME, - a sua tutela, de onde emanou aquele ordenamento jurídico da tão badalada autonomia. Pura retórica ou verdade de processos? A desconfiança instalou-se... Malhas que o império tece!...

- Entretanto, não pode esquecer-se, é a própria L.B.S.E. (Lei 46/ /86, de 14 de Outubro) que estabelece no seu art. 43º.: 'O sistema educativo deve ser dotado de estruturas administrativas de âmbito nacional, regional autónomo, regional e local, que assegurem a sua interligação com a comunidade, mediante adequados graus de participação dos professores, dos alunos, das famílias, das autarquias, de entidades representativas das actividades sociais, económicas e culturais e ainda de instituições de carácter científico'.

Para além de algumas confusões que a leitura deste artigo tem suscitado em posteriores propostas de regulamentação, tem de se afirmar, à puridade, que 'a descentralização nunca foi posta em prática pelo poder central, assistindo-se apenas à mera desconcentração de serviços do ME, de que a face mais visível é a criação das Direcções Regionais de Educação e o seu posterior desdobramento em Centros de Áreas Educativas' (in Resolução da III Conferência do Ensino Básico e Secundário. Jornal da FENPROF, .Maio de 1997, p. 7).

Saberá, de facto, o ME o que é a Descentralização da Administração do Sistema Educativo? Independentemente dos Partidos e dos Governos que têm ocupado o Poder central!... Ora, muito particularmente numa fase da vida histórica nacional em que o actual Governo parece querer admitir realmente o processo de Regionalização Administrativa do País, aliás inscrito na C.R.P. desde a sua 1ª. versão de 1976, há que estar em guarda e saber distinguir e não confundir processos de desconcentração e processos de descentralização do Poder central. Isto é tanto mais indispensável e imperioso, quanto a Administração Pública Portuguesa é inveteradamente napoleónica e napoleonicamente centralista, por tradição e estruturas sócio-burocráticas. Não desde D. João II (advirta-se bem!); mas desde D. Manuel I. O Bonapartismo não passou do chapéu adequado para a cabeça mastodôntica e disforme que já havia, da velha data!...

- Mas saberá mesmo o .ME o que é o processo de descentralizaçãoadministrativa e a tão propagandeada autonomia das escolas?! Um estudo encomendado por despacho do ME tinha, significativamente, por título: 'Princípios e propostas para um programa de reforço da autonomia das escolas', e no preâmbulo desse despacho encarecia-se o desenvolvimento de dinâmicas locais e o respeito pela especificidade de cada escola e do seu projecto educativo. Entretanto, no Despacho Normativo de 12 de Maio de 97 (gab. do Ministro) dizia-se que 'em situações devidamente fundamentadas, pode ser autorizada a constituição de agrupamentos de escolas para início de funcionamento no ano lectivo 1997/98, por despacho do competente director regional de educação, o qual, ouvidas as escolas, designará o respectivo órgão de gestão provisório' (ponto 2.1.) em suma, continua sempre a mesma cassette centralizadora e centralista: tudo, em resumo, tem sempre que vir a desaguar nas competentes direcções regionais de educação. (Vd. o artigo de Abel Macedo sobre a gestão escolar em movimento, in 'SPN-Informação Maio de 97, p.3).

De facto, 'é um mau princípio avançar no caminho doreforço da autonomia continuando a alimentar a antiga cultura centralizadora (e centralista). E aqui a administração do sistema educativo está posta perante um desafio a cuja resposta poderão corresponder diferentes dinâmicas de assunção de maiores espaços de autonomia por parte das escolas e, mais concretamente, dos professores enquanto protagonistas decisivos (que não exclusivos) das transformações a realizar '(idem, ibidem). - Não é diferente a filosofia patente e latente no mais recente Desp. Normativo 27/97, de 2 de Junho. Nada de novo, portanto: os três cavalos a montar continuam os mesmos e são já bem conhecidos: por um lado, reordenamento da rede escolar, no concernente a áreas escolares e territórios educativos, projectos educativos, regulamentos internos de escolas; por outro lado, tudo supervisionado e bem controlado pelas direcções regionais de educação. Muito fruste e defraudadamente, aí se estabelece, logo no ponto 1., depois de se referir pomposamente que 'o ano lectivo de 1997-98' será 'o ano de preparação da aplicação de um novo regime de autonomia e gestão das escolas':

'Os órgãos de administração e gestão dos jardins-de-infância e dos estabelecimentos dos ensinos básico e secundário em exercício de funções no ano lectivo de 97/98 devem, em articulação com as direcções regionais de educação, participar no processo de preparação das condições humanas, técnicas e materiais do novo regime de autonomia e gestão das escolas, designadamente no domínio do reordenamento da rede escolar através da apresentação de propostas de associação ou agrupamentos de escolas, bem como do desenvolvimento dos respectivos projectos educativos e regulamentos internos'.

Não pode deixar de considerar-se insignificante e fruste este triplo e já bem batido programa/conteúdo para justificar e legitimar o processo de uma boa e adequada autonomização das escolas: de facto, e até ao presente, tanto quanto nos é dado saber, os três pilares supra referidos pouco ou nada alteraram a atmosfera e o panorama das nossas escolas, atenuando as forças centrípetas do napoleónico centralismo administrativo, e criando, ao mesmo tempo, as condições para uma caracterização identitária e singularizada, não anódina e sempre e em tudo dependente de hierarquias superiores, de cada escola.

Ora, enquanto o discurso se confinar a este puzzle de jogos florais a projectar entre órgãos constituídos ainda que a instâncias diferenciadas, sem a definição precisa das funções e competências respectivas de tais órgãos, ou seja, sem a competente lesgislação atinente, não apenas genérica e formal, mas específica e material, capaz de enquadrar o novo aparelho institucional, que se quer verdadeiramente descentralizado e com escolas, na base, (da pirâmide...), verdadeiramente autónomas, sabendo que o são dentro dos seus limites próprios, decididamente, não vemos que se esteja a falar a sério de coisas sérias: tudo não passará ao fim, de pura retórica para prosseguir e reforçar exactamente o contrário do que se anuncia: a dependência e sobrevivência das escolas - unidades singulares ou agrupadas - relativamente às instâncias superiores, situação agravada num baralhamento ainda maior e com mais margem de arbitrariedade, visto que só uma legislação clara e explícita pode libertar as bases de situações difíceis e imbrógli, onde, sem esses meios ou mediações, acabam sempre por imperar o arbítrio e a prepotência das decisões hierárquicas das instâncias superiores. É, com efeito, a lei geral e comum, não a generosidade dos superiores em relação aos inferiores, que assegura a defesa dos pobres e dos humildes - lembrava Lacordaire (1802/1861), no seu tempo. O mesmo se pode e deve dizer das bases, em confronto com as instâncias superiores e de topo, na tradicional pirâmide sócio-organizativa.

Não se esqueça que aquilo que proporcionou a grandeza do Ocidente, no que ele encerra de positivo, rasgando e consolidando práticas e caminhos democráticos, na esteira da Hélade e do hebraísmo e, também, em boa parte, do Direito e Administração Romanos, foi precisamente o primado da Lei sobre a directa vontade mais ou menos arbitrária do suzerano, dos detentores do poder e dos poderes. A clássica divisão tripartida (Montesquieu) dos poderes teve a sua última origem nesse princípio.

 

É, pois, necessário estar criticamente atento às consequências negativas da pós-modernidade e do seu espírito sobre as funções e os desígnios positivos da modernista lei geral e comum. A grandeza da Europa e do Ocidente, no que diz respeito às vivências e aprendizagens da democracia, deve-se efectivamente à Lei enquanto instrumento supremo e decisivo da organização social e da constituição e funcionamento da sociedade.

Nesta persistente problemática pedagógico sócio-organizativa, deve recordar-se o postulado da boa sabedoria prático-teórica: no universo humano o que importa e é mesmo decisivo, não é tanto o que fazer, outrossim, e acima de tudo, o como fazer!

Compreender-se-à tanto melhor este postulado axiomático quando se tome consciência de que a vera e autêntica autoridade com futuro para a espécie humana, enquanto tal, não é a do poder seco, tout court, mas a do saber, do saber sabedoria! Aquela, na verdade, não é capaz de sair das rotas do mecanicismo extrinsecista, das hierarquias rígidas, sejam elas sagradas ou profanas. Ela não é, pois, por definição, capaz de democracia e autonomia autênticas. Nunca será capaz de se cindir o direito e a justiça do princípio da força dos mais poderosos!... Pelo contrário, a autoridade, que decorre do verdadeiro saber sabedoria, é democrática e autónoma/heterónoma, por vocação, porque é, nos seus fundamentos, respeitadora da alteridade dos outros. Ela é e funda a autoridade moral, - a única humanamente legítima, em última instância.

- Voltando à documentação jurídica em questão. O curioso e surpreendente - deve dizer-se isto em abono da verdade - é que até se reconhece, positivamente, que, no novo enquadramento e gestão das escolas, 'autonomia das escolas surge como um valor intrínseco à sua organização e como um meio de esta se realizar em melhores condições as suas finalidades, em benefício da aprendizagem dos alunos' (preâmbulo do DN de 12 de Maio de 1997). O que, portanto, se tem de preconizar e exigir aos responsáveis é Coerência, nos ditos e nos feitos, para que o seu discurso deixe de apresentar as marcas embusteiras da pura retórica, obtendo apenas como efeitos os jogos de cena e a mudança estrita do discurso para que a triste e vil realidade fique sempre na mesma. 'Novo regime de autonomia e gestão das escolas'!... Este enunciado é, hoje, um lugar comum na legislação dimanada das instâncias superiores do ME. Onde está a suposta novidade, em relação aos últimos oito anos, desde o Dec.-Lei 43/89?!...À força de (num afogueado espírito de marketing...) se impressionar o olho com as supostas novidades, corre-se o risco de deixar tudo na mesma... Ou, na realidade, para pior, visto que 'in rebus 'humanis', ou se progride, ou se regride e chama a degradação cada vez maior!... Nesta óptica, consideraremos esses 'montes alentejanos' que seriam os preconizados agrupamentos de escolas, constituídos em nome da nova filosofia e dos processos de 'autonomia das escolas'. Quando, afinal, o contraponto tem de ser feito entre os Alpes (Himalaias, Quilimanjaros...) e as planuras, em pé de igualdade para todas as escolas nacionais, envolvidas pela rede pública e oficial.

Manuel Reis

Professor

Guimarães

 


  
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Autoria:

Manuel Reis
Professor e Presidente do Centro de Estudos do Humanismo Crítico. Guimarães
Manuel Reis
Professor e Presidente do Centro de Estudos do Humanismo Crítico. Guimarães

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