Pelas suas próprias palavras, tudo começou numa aposta hípica infeliz. Tendo uma dívida para com dois corretores de apostas, Kessel e Bauman, Mack Sennett propôs-lhes num encontro na 14ª Rua de Nova Iorque, para se associarem e formar uma empresa de produção e distribuição dos seus próprios filmes, os quais, segundo ele, "dão mais dinheiro que os de Griffith". Meio a brincar meio a sério, propôs-lhes o seguinte: "Esqueçam os 100 dólares que vos devo e invistam mais 2.500 para fundar uma nova companhia". Isso aconteceu uns dias mais tarde, em 4 de Julho de 1912 numa reunião perto da Pennsylvania Station. Uma inscrição que se encontrava na rua deu o nome à empresa "Keystone", melhor que "Sennett Comedies" ou "Bauman and Kessel Comedies". O duo, que sem saber lhe tinha saído a taluda, investiu 2.000 "greens" e o malvado Mack assegurou um terço dos lucros, entrando com 850 dólares graças à venda de uma jóia de sua mãe. Assim era a vida nos começos do Cinema, essa arte de aventureiros prontos para tudo, e não de carreiristas calculistas - como nos lembrarão largos anos depois Rosselini e a Nouvelle Vague. Mack Sennett, 32 anos, tinha feito mais de 100 filmes burlescos para a Biograph em dois anos, de 1910 a 1912. Antes, entre 1908 e 1910, tinha sido actor e assistente de Griffith. Mas, nesse dia ele fundou a Keystone, a "Fábrica de Riso" americana, lema sobre o qual produzirá, escreverá, interpretará, durante 3 anos, até 1915, à volta de 420 pequenos filmes cómicos; antes de se associar às grandes companhias. Ao seu lado, havia é claro uma grande "troupe". No início, Sennett utilizava uma câmara "pirata", escapando ao monopólio detido por Edison; não tinha um estúdio: operava nas ruas, ou alugava apartamentos e tinha consigo - vindos igualmente da Biograph - Mabel Normand (sua cúmplice) e Ford Sterling. A que se juntaram mais tarde Roscoe "Fatty" Arbuckle, Charlie Chase, Al St. John e outros, sem esquecer os "Keystone Cops" e os bombeiros que largavam água a toda a hora e instante. A Keystone adquiriu mais tarde um pequeno estúdio em Edendal que foi de facto um pequeno Éden: "um universo onde se permitia tudo, uma alegre anarquia", onde "as ideias mais loucas que nos poderiam passar pela cabeça sob o efeito de haxixe tomavam em nós uma proporção incrível" disse Sennett. Foi lá, foi assim, neste ambiente trepidante, que Mack Sennett fez aparecer, com o seu bando, o seu estilo de "Slapsticks" fundado na desmesura, na desordem, no delírio, na orgia de corpos e objectos, uma avalanche de "gags", de destruições e de perseguições. Um burlesco dionisíaco, provocante, enraivecido, subversivo: libertador. Um burlesco surrealista, acumulando as colisões inesperadas, os encontros loucos de pessoas e coisas, um burlesco fundador, que opera uma descoberta, uma experimentação física do mundo, num vasto corpo a corpo - a infância da arte (re)produzindo assim a infância do Homem. Momento único na história universal, correspondendo ao crescimento do poder do capitalismo americano, da sociedade moderna: sociedade caracterizada por um lado pela sobreprodução, sobreconsumo, pela corrida trepidante o que a arte de Sennett ridiculariza exacerbando-a; sociedade caracterizada por outro lado por normas e tabus, que a arte de Sennett ultrapassa libertando os corpos e pulsões. Momento único na história da 7ª arte que dava os primeiros passos, que se confronta aqui como nunca com o real, que se liberta aqui como nunca das convenções teatrais. Paulo Teixeira de Sousa Escola Secundária de Soares dos Reis PS: No "Le Monde Diplomatique" de Junho de 2000 um artigo que não posso deixar de citar "A Europa precisa de laicidade" de Henri Pena-Ruiz: "Na Áustria, o artigo 108 do código penal prevê sanções contra "qualquer difamação dos preceitos religiosos". É em nome deste artigo que a Diocese de Innsbruck, em 1986, se insurgiu contra a projecção de um filme inspirado no livro de Oskar Panizza "O concílio de amor". Após o embargo ao filme, por ordem do Tribunal de Innsburck, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em Estrasburgo confirmou a sanção. Os juízes associaram ataques a um credo religioso a uma contestação dos direitos de outrem, considerando, sem dúvida, como uma ofensa pessoal a ironia ou a crítica visando a fé. Interpretação grave, que deriva de uma escorregadela jurídica inquietante, a do respeito pela pessoa que crê no direito da sua própria crença. Definir como direito de uma pessoa a sua recusa de ver contestar as suas convicções religiosas é abrir uma porta a uma espécie de ordem moral.
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