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Educação Básica, Básicos Direitos

A expressão "educação para a cidadania" tem vindo a ocupar recentemente no discurso político o lugar que outrora foi ocupado por expressões como "escola democrática" ou "educação para o desenvolvimento". No entanto, a considerável difusão da expressão, e a sua assunção como programa político configurador das finalidades atribuídas à educação básica, não apenas não quer dizer que em torno dela se tenha estabelecido um consenso social alargado, como também a não isenta de significações equívocas. Com efeito, o contrabando semântico realizado em torno da educação para a cidadania exprime-se, desde logo, na atribuição a esta expressão do significado conservador de "socialização" das crianças e adolescentes nas normas e valores dominantes, potencialmente postos em causa pela anomia social ou a "crise de valores". Nesta acepção "educação para a cidadania" é sinónimo de "disciplinação". Numa outra acepção, ideológica e politicamente também conservadora, mas mais mitigada, "educação para a cidadania" significa a (intencionalidade da) inserção social de crianças e adolescentes pela aquisição da cultura (dos saberes e das normas sociais) dominante. Nesta segunda acepção, a expressão reconstituiu o significado atribuído pelas perspectivas funcionalistas da educação: inclusão social pelo lado da aculturação nos padrões hegemónicos.
O efeito de ressemantização da expressão "educação para a cidadania" (a qual é geneticamente filiável na conceptualização da educação democrática de um John Dewey, ou, entre nós, de um António Sérgio), torna provavelmente indispensável o seu abandono: se, ao falarmos de algo, empregamos uma expressão que também significa o seu contrário, É preferível utilizarmos palavras diferentes, para resgatar significados distintos. No entanto, interessa-nos aqui identificar o processo simbólico que produz a ressemantização (até porque esse processo é hoje estruturante do discurso educativo oficial).
Esse processo corresponde a dois movimentos distintos: primeiro, o da deslocação do topus do discurso para o interior da escola, tal como ela está actualmente instituída; segundo, o da consensualização "moral" do que, no entanto, é politicamente investido.
O primeiro movimento consiste em apresentar a educação para a cidadania como um domínio interno à instituição escolar, curricularizável, indiferente aos constrangimentos e possibilidades sociais da sua ocorrência. Ora, a educação para a cidadania coloca, por definição, a questão da criação das condições da vida da cidade no coração do seu próprio significado. Neste sentido, não pode haver educação para a cidadania sem se considerar a possibilidade do exercício da participação cívica no conjunto da sociedade. Isso questiona a escola e o seu papel na construção do espaço cívico, isto é, torna a educação para a cidadania numa questão social, a ser debatida também no interior da escola, e não num mero projecto curricular.
O segundo movimento consiste em considerar como uma questão moral a "cidadania" (e, por isso, escolarmente transmissível) sendo negligenciável a natureza dos direitos sociais, económicos, políticos e culturais do seu exercício. A despolitização da educação para a cidadania torna indiferente o sentido do projecto da escola na construção dos contextos sociais de vida dos seus actores. No entanto, dado que há sempre um projecto de sociedade por detrás de qualquer política educativa, a apresentação como "moral" da acção educativa, torna irreconhecível o sentido da política efectivamente em curso, apresentando-a como a "única" e "natural".
A ressemantização da educação para a cidadania torna possível o que, de outro modo, se tornaria incompreensível: a conciliação de uma retórica cívica com uma agenda educativa dependente de uma lógica contábil ou de mercado, construída em todo o mundo (com especial ênfase nos países anglo-saxónicos) em torno de uma orientação política neo-liberal. ? assim, que, no que respeita à Educação Básica, se evidenciam medidas como a das provas nacionais de aferição, a subordinação a uma orientação gestionária da constituição dos agrupamentos de escola e a clara opção por uma sequencialidade regressiva (isto é, de importação pelos níveis de ensino mais baixos das modalidades organizacionais dos níveis mais elevados), na orientação curricular e organizacional da Educação Básica (incluindo aí a Educação de infância, precocemente curricularizada e escolarizada).
Em contrapartida, são menos evidentes os temas que podem fazer das políticas para a educação básica efectivas construções de uma educação para a cidadania, ou melhor, para uma educação fundada nos direitos sociais (nomeadamente na expressão que isso assume na Convenção dos Direitos da Criança e na Declaração dos Direitos do Homem): a discriminação positiva nas áreas e territórios de exclusão, a educação para a diversidade cultural, a assunção da Educação Básica no quadro de uma efectiva territorialização ou, dito de outro modo, no quadro da educação comunitária - , a assunção da educação como uma política social integrada.
A Educação Básica vive hoje uma encruzilhada, em boa parte decorrente da sobreposição de discursos e de medidas de orientação política. Os sentidos da acção educativa jogam-se em vários e distintos níveis de decisão: não é porém, indiferente à construção desses sentidos a clara dilucidação (simultaneamente teórica e praxeológica) da sua natureza social, política e pedagógica.


Manuel Jacinto Sarmento
Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho


  
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Edição:

N.º 92
Ano 9, Junho 2000

Autoria:

Manuel Jacinto Sarmento
Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho
Manuel Jacinto Sarmento
Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho

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