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Albano Martins - Cinquenta Anos Somados de Poesia

Neste 2000 em que Albano Martins celebra 70 anos de vida e 50 anos sobre a sua estreia poética com Secura Verde (1950), importa, antes de mais, fazer uma inevitável referência à sua evidente ligação com outros poetas no início da aventura e aproximação com a revista Árvore, que procurou ser a ruptura necessária para outros caminhos poéticos, mas na sombra e presença da corrente neo-realista e no esmorecer de certas posições surrealistas, foi o despertar para outras linhas de força poéticas e literárias. De facto, o Poeta de Vocação do Silêncio surge nitidamente ligado a um grupo de poetas ( Raul de Carvalho, António Ramos Rosa, António Luís Moita, José Terra e Luís Amaro) que se afirmaram com um evidente "espírito de grupo" nas páginas dos quatro números publicados de Árvore (1951-1953), apesar de cada um ter feito depois o seu percurso pessoal por caminhos que deixaram de se bifurcar como era bem claro nos primeiros títulos que apareceram no começo dessa aventura literária e poética.
Mas, na soma dos vários livros publicados com regularidade desde 1974, retomando uma "vocação" silenciada ao longo de muitos anos (porque se observa entre Secura Verde e Coração de Bússola um interregno de quase vinte anos), a poética de Albano Martins tem sido abordada na perspectiva de ser uma voz serena e discreta, de fala quase em surdina, na brevidade e na intencionalidade dos poemas. Mas não é só disso que se trata. Em primeiro lugar, redescobrimos as suas próprias raízes em poetas de uma idêntica "fala" ou "registo" (Afonso Duarte, Raul de Carvalho, Edmundo de Bettencourt, Saul Dias, Aureliano Lima ou Fernando Echevarria), porque se trata de vozes que soam de muito longe, no lirismo mais empenhado e reinventado, que se alarga pelo caminho que melhor nos faz evocar as fontes originais da nossa poesia. Não há aqui qualquer novidade ou redescoberta. Mas o que nos parece dever pôr-se em relevo é ainda esse silenciar de vozes que subjazem pelo fio da nossa mais antiga tradição poética e se não fazem ouvir no tempo e no espaço em que os poetas vivem tão perto de nós.
Em segundo lugar, toda a poesia de Albano Martins se desdobra entre silêncios e emoções que percorrem as águas tranquilas dos rios e lugares que desde sempre a povoaram: "Escavo / com minhas mãos a lama / do silêncio. Não / conheço outro ofício". E, pelo magma expressivo dos últimos livros, na propositada escassez metafórica do seu discurso e na forma de dizer o que é essencial e captar o sentido profundo das coisas, sentimentos e ideias, assim se pode entender essa "margem do azul" que sempre nos desvenda os sinais de fogo de uma comovida emotividade nos acasos da vida e do amor ou ainda nos "concretos/inconcretos domínios" em que a voz se consolida e purifica numa atitude poética singular, bem definida, coerentemente retomada de livro para livro, sem facilidades nem transigências expressivas.
Claro, entre o "discursivismo" dos primeiros livros e a contenção ou o rigor vocabular e imagístico de Escrito a Vermelho (1999), o que sempre percorre a poesia de Albano Martins é esse modo de saber desmultiplicar-se entre o que é visível e indizível, isto é, entre aquilo que nas suas imagens e metáforas se prolonga e observa e o que se não diz (ou também se diz de outro modo): "Ínvios / são os caminhos / da posse. Ínvio / láveis".
E deste modo a voz poética de Albano Martins ganha outra tonalidade e intenção pelas águas calmas dos rios por onde deslizam os anseios levados por "remos escaldantes": não por se não confundir na depurada surdina de outras vozes, mas sobretudo por se entender que, no curso renovado das suas águas, outros "inconcretos domínios" avançam e denotam uma vocação própria de se afirmar em discurso tão definitivo e coerente. Na brevidade da fala e na atitude magoada da emotividade, perpassam versos e imagens que nos chegam como lamentos e estados de espírito ou de lugar: "De mim dirão / talvez que fui / o anverso deste silvo, o casco / entre a verdura, a flor / da erva-cidreira".Trata-se, pois, de uma fala poética que sob os limos esconde ou denuncia outros complementos de lugar, diferentes vozes se bifurcam nos caminhos cruzados de uma expressão suavizada, e tranquilas se revelam as águas do mesmo rio que subjaz na consentida brevidade dos poemas, numa síntese procurada e sempre encontrada, verso a verso, imagem por imagem: "A teu lado viajo. / Contigo navego. / Remos são as palavras / que te digo e escrevo". Mas o que parece quase indizível na poesia de Albano Martins, na contenção dominada de metáforas carregadas de sentido, se afirma, afinal, essa atitude quase contemplativa de saber olhar e entender o mundo, captando dele toda a vaga de sentimentos e emoções que pela poesia se evidenciam como sinais de não haver outras inquietações. E assim esse obscuro sentido das coisas se decanta pelas águas e margens calmas do mesmo rio por onde escorre e navega a sua poesia, como é disso um exemplo admirável o seu Rodomel Rododendro. Assim, na clara frequência de vocábulos como sono, remos, silêncio, memória, tempo, lábios, voz, rios, domínios, o que mais se observa na carga expressiva da sua poesia é esse nítido tom desenfadado e subtil de captar a verdade das coisas, mesmo que nem sempre se escrevam a vermelho: "Não permitir que a voz / corrompa os lábios: aderir / somente ao desejo". Ou clamar ainda como uma espécie de divisa: "Percorrerás de novo estas veredas. Ouvirás / de novo o sino (e a sina) / nas asas / da calhandra".
Por último, poder dizer-se que nas "margens do azul", que se revelam memória e reminiscência de outros rios e lugares, esse universo melhor se adivinha e mais coerentemente se denota no sentido poético em que Albano Martins mergulha as suas próprias raízes e dá corpo a uma "poética" que se alarga entre a carga intencional de ser mais "visível" e "indizível" nos limites da expressão como uma original vocação de silêncio que se confirma nestes cinquenta anos de poesia que agora se celebram e por se evidenciar de livro para livro como uma poética de brevidade, discrição e serenidade, pelos valores mantidos desde o início da caminhada e pelos postulados defendidos nas páginas de Árvore de boa memória.

Serafim Ferreira
Crítico Literário


  
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Edição:

N.º 91
Ano 9, Maio 2000

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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