Página  >  Edições  >  N.º 89  >  Leituras Soltas

Leituras Soltas

Desassossegos
Recensão do livro
Educação Básica. Democracia e Cidadania. Dilemas e Perspectivas.
Afonso, Almerindo, J. (1999)
Porto: Edições Afrontamento.


Estamos perante um texto que nos desafia, a nós leitores, a perseguir os objectivos de uma escola democrática ao serviço da igualdade de oportunidades e de sucesso escolar para todos.
O discurso, que vai sendo tecido, proporciona ao leitor, para além da reflexão crítica sobre a(s) problemática(s) das políticas educativas, mais precisamente, no âmbito da avaliação educacional, um diálogo interpelante com a realidade educativa portuguesa, especialmente com a educação pública veiculada pela escola básica obrigatória, na qual o Estado-providência assume um papel determinante ao garantir a todos os cidadãos direitos sociais e culturais que lhes estão consignados na Lei de Bases do Sistema Educativo.
Fazendo uma incursão, já histórica, sobre um passado recente, o autor apresenta ao leitor uma análise elucidativa (ainda que sumária) de alguns dos programas governamentais das décadas de 80/90 ? Programa Interministerial de Promoção do Sucesso Educativo (PIPSE); Programa Educação para Todos (PEPT); Programa de Desenvolvimento Educativo para Portugal (PRODEP) e Programas de Educação Multicultural (PREDI).
Desde logo, a abordagem crítica levada a efeito sobre estes programas quer destacar, por um lado, uma política de igualdade que subjazia ao aparecimento destes programas que pretendiam prestar mais atenção à heterogeneidade e à multiculturalidade dos alunos e que ficaram muito aquém das expectativas iniciais, por outro, sublinhar a problemática do insucesso educativo da escola de massas e do abandono escolares, embora, no caso do abandono escolar, tivesse havido uma melhoria. Mas, para ilustrar o seu ponto de vista, o autor recorre a dados estatísticos, a partir de estudos realizados, inferindo que, comparativamente a outros países europeus, Portugal continua a marcar a diferença, pela negativa, relativamente ao abandono precoce da escolaridade básica.
Continuando a sua análise, insiste na necessidade de, com persistência e empenhamento, se reequacionar e se questionar as estratégias que têm vindo a ser implementadas no tocante a uma escola que se quer mais pública e democrática.
Sem nos desviarmos da estrutura seguida por Almerindo Afonso neste seu trabalho, chegamos a uma secção em que são destacadas as práticas pedagógicas dos professores, especificamente no que concerne à avaliação dos alunos na escola básica. O Despacho Normativo nº 98-A/92 vai servir de enquadramento legal ao novo modelo de avaliação do ensino básico e de pano de fundo a um trabalho de investigação, levado a efeito pelo autor.
Minuciosamente, são recordados os passos dados para a construção do instrumento de recolha de dados ? um inquérito por questionário ? necessário para se conhecer as opiniões de professores dos ensinos básico e secundário sobre o «conteúdo e implicações» do referido normativo, não se esquecendo o autor, tal como nos diz de

«[?] relacionar, sempre que possível, o conteúdo dos diferentes itens com as dimensões mais importantes previamente consideradas na sua elaboração: ideias e representações em torno da avaliação, funções imputadas à avaliação, informação sobre o conteúdo do novo normativo e conhecimento de decisões de âmbito escolar a ele referenciadas, perfil do director de turma e práticas de conselho de turma congruentes com a concretização do novo modelo de avaliação» (pg. 28).

Assim, elucidativamente, apresenta-nos os níveis de concordância, discordância e de indecisão dos sujeitos inquiridos relativamente aos enunciados propostos.
Paulatinamente, vai chegando a algumas conclusões que apontam para certos enviesamentos na aplicação deste novo modelo de avaliação a partir das próprias opiniões recolhidas junto dos inquiridos. As dúvidas, que parecem transparecer das respostas relativamente à questão da não selectividade da escola básica, acabam por revelar que um dos seus objectivos fundamentais ? a promoção de um mínimo cultural comum, de que nos fala Pierre Bourdieu (1987) ? não é atingido e nem sequer os professores parecem estar sensíveis ou entusiasmados com as mudanças, que poderiam ocorrer em todo o processo pedagógico, a partir da implementação deste modelo de avaliação. Efectivamente, não parece ter havido «melhoria na qualidade de ensino nas turmas sujeitas a este novo modelo de avaliação» (pg. 35).
À medida que avançamos na análise do texto, somos informados, pelo autor, que outros elementos para a compreensão das práticas dos professores foram convocados: actas de conselhos pedagógicos e de conselhos de turma, assim como, «uma série de documentos e registos de avaliação utilizados no âmbito escolar» (pg. 42).
Foi considerada muito pertinente a análise relativa aos «planos de apoio e complemento educativos». O estudo desses materiais acabou por mostrar ao autor que, ao contrário do que seria de esperar, «a maior parte dos alunos que foram indicados para a avaliação sumativa extraordinária, nos casos que nós analisámos, tenham transitado de ano» (pg. 45). É que, no caso das escolas envolvidas nesta investigação, como nos é recordado, verificou-se uma tendência para a diminuição das retenções, mas isso não se deveu ao facto de ter havido uma melhoria significativa das aprendizagens, nem sequer à eficácia dos planos de recuperação, o que não deixa de ser, no mínimo, congruente com uma denominada «passagem automática praticada».
Assim, muito pertinentemente, são enfatizadas as possíveis e inesperadas perversidades decorrentes da aplicação deste novo modelo avaliativo ao afirmar que:
«[?] se é verdade que novos passos na consolidação de uma escola para todos podiam ter sido concretizados pela oportunidade aberta pelo novo modelo de avaliação [?], também é verdade que algumas das contradições deste projecto e, sobretudo, a precaridade e fragilidade das condições com que pôde contar em muitas escolas, tiveram inesperadas consequências (em alguns casos perversas), cuja complexidade ainda é cedo para perceber com profundidade e objectividade» (pgs. 48-49).

Interessante será realçar o que o autor salienta, quanto a nós, com algum optimismo, que não podemos generalizar as conclusões a que foi chegando com este trabalho de investigação (apesar de este estudo revelar um posicionamento de acordo com os contextos e lógicas de acção dos actores estudados) e nem sequer ficar com uma «visão unanimista» das práticas avaliativas dos docentes, pois que, outros espaços escolares podem ter chegado a «soluções mais criativas», mais conformes e coerentes com os princípios de uma escola básica não selectiva, capaz de lidar com as diferenças sociais e culturais dos alunos e de promover o sucesso educativo e a equidade cultural, de acordo com uma política de igualdade de oportunidades.
No entanto, mesmo nas entrevistas realizadas, os inquiridos manifestaram uma opinião unânime quando afirmaram que a avaliação formativa «não tem sido praticada como devia porque é uma forma de avaliação que exige uma grande disponibilidade, que os professores não têm» (pg. 51). Por outro lado, houve opiniões que foram no sentido de uma crença que começou a enraizar-se de que a escola básica não era compatível com a qualidade que se exige em outros níveis de ensino e, também, que os professores não fizeram mais do que corresponder ao necessário sucesso estatístico que se pretendia fazer crer existente na escolaridade obrigatória.
Em síntese, o autor aponta algumas práticas que acabaram por desvirtuar este novo modelo de avaliação e promover o insucesso acumulado.

«[?] passámos a ter uma escola básica mais injusta e selectiva que a anterior. [?] Por isso, nos caso em que se optou por uma promoção sem aprendizagem, não se fez mais do que protelar ou dissimular a selecção escolar sem a resolver, criando falsas expectativas que, com grande probabilidade, terão acabado em novas frustrações e exclusões. [?] o que acabámos de referir traduz, com uma evidência empírica insofismável, a existência do que designámos por cultura social de discriminação» (pg. 57).
Depois da viagem que fizemos por este livro que convoca e vai esmiuçando um enorme leque de questões extraordinariamente pertinentes, poderíamos ser levados a pensar que encontraríamos algumas respostas do tipo sef-service e, então dormiríamos sossegados. Mas, não. O autor não quer que os professores se sintam anestesiados pelas rotinas instaladas, nem que deixem de se aperceber das conjunturas políticas que «parecem estar a caracterizar-se cada vez mais pela tentativa de articulação de finalidades, lógicas e solicitações híbridas e, às vezes contraditórias» (pg. 60) que sustentam a escola básica. Por isso formula uma interessante questão com que termina o seu discurso e para a qual desafiamos os nossos leitores.
E, nós professores, temos de ficar desassossegados. Os dilemas que enfrentamos poderão ser, simultaneamente, um convite à reflexão, à criatividade, à inovação.

Maria Cecília Santos


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 89
Ano 9, Março 2000

Autoria:

Maria Cecília Santos

Maria Cecília Santos

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo