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"Gestão Controlada das Desigualdades?"

Sobre a proposta de revisão curricular do ensino secundário

Sem querer pôr em causa políticas educativas recentes potencialmente inovadoras e interessantes, sentimo-nos obrigados a perguntar: que raio de educação "socialista" é esta que parece discriminar as filhas e os filhos (sobretudo) da classe trabalhadora, dificultando o seu acesso às condições necessárias para a igualdade de participação no mercado de trabalho e na sociedade pela criação de medidas como os currículos alternativos e cursos tecnológicos que não dão acesso ao ensino superior?
Trata-se de duas opções de política educativa nevrálgicas para quem quer que defenda a igualdade de oportunidades de acesso ? já sem falar da igualdade de oportunidades de sucesso -, porque são duas políticas que põem em causa este princípio num país onde ele está longe de se encontrar interiorizado pelos agentes educativos. Temos vindo a falar da escola para todos em Portugal como uma escola simultaneamente em crise e em consolidação precisamente para exprimir o processo ainda em desenvolvimento de uma cultura de escola.
O Ministério da Educação acaba de divulgar, para discussão pública, um documento intitulado «Proposta de Revisão Curricular», datado de Novembro de 1999. Assume-se como o resultado das conclusões «da reflexão produzida no decurso do projecto de Revisão Participada do Currículo que o Departamento do Ensino Secundário desenvolveu formalmente desde Fevereiro de 1997 (...), dos documentos orientadores das políticas para o ensino secundário, produzidos no âmbito do XIII Governo Constitucional» assim como «dos pareceres e recomendações do Conselho Nacional de Educação» (p.2). Este processo, ainda na letra do texto, teria envolvido importante parte da comunidade educativa portuguesa (escolas, professores e parceiros educativos de todos os subsistemas do secundário). À cabeça, pois, a «Proposta de Revisão Curricular», parece chamar a si um consenso entre os diversos actores do sistema educativo. É, contudo, esta área aparentemente "consensual" que nos parece ser interessante questionar.
É sempre não aconselhável começar um processo de discussão com a afirmação de "grandes" áreas de convergência. A razão é que o âmbito daquele quase que automática e implicitamente acaba por ser restringido, sendo dados como adquiridos e pacíficos alguns dos termos em que essa discussão poderia ocorrer. É o caso da questão da "diversificação" do secundário, um axioma político que surge como o indiscutido da discussão que ora se inicia, quer dizer, como o consenso prévio e posterior à discussão.
Não estamos, é claro, a significar com isto que o que nos move na presente análise é uma posição contra um ensino secundário diversificado, antes, o que procuramos é, por um lado, enfatizar a questão do enquadramento político e social desse mesmo processo e, por outro, aventar, nessa perspectiva, as eventuais consequências da actual «Proposta».
Qual é actual situação de "diversidade" do subsistema do secundário? Há, por um lado, cursos predominantemente orientados para a vida activa, isto é, os cursos tecnológicos do ensino secundário regular, cursos técnicos do ensino secundário recorrente, cursos profissionais ministrados nas escolas profissionais e cursos do ensino artístico especializado. Por outro lado, há os cursos predominantemente orientados para o prosseguimento de estudos, isto é, os cursos gerais do ensino secundário regular, curso geral do ensino secundário recorrente e os do ensino artístico especializado. O documento em apreço não discute a dimensão social e pedagógica desta diversificação, nem analisa os eventuais efeitos sociais que entretanto produziu, assentando antes nela toda a sua perspectiva: «(n)o ajustamento curricular que agora se propõe estruturam-se os cursos gerais como claramente orientados para o prosseguimento de estudos e os cursos tecnológicos como cursos claramente orientados para a integração no mundo do trabalho» (p.4, sublinhado no original).
É nesta área de aparente consenso que gostaríamos de colocar uma parte da nossa reflexão, das nossas dúvidas e do nosso contributo crítico. A justificação das políticas de diversificação do secundário não podem, nos dias que correm, sustentar-se numa assumida boa fé de pretender proporcionar aos jovens - sobretudo daqueles que, para utilizar uma expressão já esgrimida em debates semelhantes, a escola parece desistir - uma via de escolarização ao nível de um curso do secundário. As ciências da educação, em geral, e a sociologia da educação, em particular, fornecem material empírico e teórico, e uma massa crítica considerável que vai no sentido de mostrar que quando a diversificação não é um recurso dos alunos, dos estudantes ou das suas famílias, mas um dispositivo do sistema educativo que o usa com vista ao aumento da sua eventual eficácia política e social, a selectividade social da escola aumenta.
Queremos demarcar-nos do que parece ser uma tentativa de valorizar as diferenças na escola para melhor justificar e legitimar a selecção levada a cabo pela escola nestes novos tempos de produção e consumo diversificados. Na nossa perspectiva, isto seria igual ao reforço da arrogância da escola e, assim, uma subversão do ideal multicultural. Valorizar as diferenças na escola pode querer dizer aumentar o valor dos recursos culturais (de todos os grupos sociais, mas especialmente dos subalternizados), sem subestimar a importância daquilo que nos liga uns aos outros. De facto, quando hoje em dia a muito apregoada diversificação entra em jogo no sistema educativo é sobretudo no sentido de diversificar saídas para a estrutura ocupacional. Por outras palavras, o ensino para o aluno-padrão do sistema não se altera. O que muda é o canal, a via pela qual cada aluno é dimensionado para a chamada vida activa.
Na actual situação de organização curricular, em princípio e em termos formais, parece estar garantida a permeabilidade entre os cursos orientados para o mundo do trabalho e os orientados para o prosseguimento de estudos. Não somos ingénuos quanto ao facto de as passerelles entre esses cursos serem raramente percorridas, assim como também não alimentamos ilusões acerca do facto de aqueles alunos que frequentam os cursos tecnológicos usarem realmente a possibilidade formal que lhes é oferecida de se encaminharem para o ensino superior. O que nos causa séria preocupação, pois, na actual proposta é o silêncio sobre esta questão, isto é, sobre se a diversificação que se pretende dinamizar e intensificar corresponde a um colocar dos estudantes dos cursos tecnológicos numa situação que, além de diversa, é um fim em si mesma, sem saída.
É, porventura, injusto imputar ao silêncio do não-dito intenções que, e aceitámo-lo, não são as dos autores do documento, mas, em educação, como no mais, a ingenuidade é algo que nos está vedado no mundo de radical reflexividade como o nosso. Tanto mais que os termos ambíguos em que é formulada a possibilidade de criação de um ano pós-12º Ano nos parece, combinado com esse silêncio sobre a articulação dos cursos tecnológicos com o ensino superior, realmente susceptíveis de suspeição.
A existência de um tronco comum a todos os cursos poderá facilitar a permeabilidade entre eles, mas o ano pós-12º ano irá permitir, de facto, "corrigir (...) o percurso formativo" (p. 4) de quem? De todos aqueles que o pretendam, independentemente do tipo de curso que frequentaram? Preferencialmente daqueles que, dos cursos tecnológicos, pretendem ingressar na via do prosseguimento de estudos? Têm estes de pagar obrigatoriamente o ónus de um ano suplementar ? dada a desproporção das cargas horárias sobretudo entre as disciplinas de formação específica e as científico-tecnológicas e entre os próprios perfis curriculares dos cursos tecnológicos e dos outros? Será que a escola para todos é aquela em que alguns têm que cumprir 12 anos para chegar ao ensino superior e outros são obrigados a cumprir 13 ou 14 anos? Embora a escolaridade obrigatória em Portugal esteja prevista neste momento até à idade de 15 anos, a tendência é para a extensão desta obrigatoriedade até ao fim do ensino secundário.
Sabemos que se trata de um documento para discussão, mas o peso deste silêncio e desta indefinição parece-nos insustentável. O Director do Departamento do Ensino Secundário afirma (no artigo "Ministério da Educação diz que não há becos sem saída", Público 11 de Dezembro de 1999): «se há uma coisa que ficou provada em dois anos de "verdadeiro diálogo social" com professores, associações empresariais e pais foi, "inequivocamente, que esta diversificação do ensino secundário tinha que ser consumada (...) Não podemos ter mais a visão limitada de que temos liceus que preparam os alunos só para o superior». Que diálogo social é este? Se se perguntasse aos portugueses se queriam que se se fechassem as fronteiras a produtos, por exemplo, espanhóis, provavelmente muita gente, eventualmente a maioria, diria que sim. Da mesma forma, G. Pasharoupoulos, no seu famoso artigo «To Vocationalise or Not, That is the Question», afirma que não há nenhum pai ou mãe que dê uma resposta negativa à pergunta: "gostaria que a escola proporcionasse um curso ao seu educando(a) que lhe permitisse entrar no mercado de trabalho?". Por isso temos que ser muito cuidadosos quando nos referimos ao "diálogo social", ainda mais quando "verdadeiro", como justificação para políticas que porventura possam por em causa princípios fundamentais como é o da igualdade de oportunidades.
Outra assunção do documento aparentemente consensual: aquilo que é da ordem do tecnológico, do como fazer, opõe-se ao teórico, ao saber e ao saber fazer. Mais uma vez, a reflexividade contemporânea nos parece ser iludida. Quer dizer, se hoje as ciências sociais e humanas que assumem como objecto os processos de ensino-aprendizagem enfatizam a inseparabilidade da acção e do conhecimento, do saber e do fazer, do como e do porquê, parece que, num suspeito curto-circuito entre o conhecimento sobre o social e o humano e a acção política, os responsáveis pela política educativa desejam colocar em vias separadas aquilo que o desenvolvimento social, cognitivo, ético e político das crianças e dos jovens exige que se mantenha unido. A proposta de revisão curricular em apreço parece efectivamente falhar a oportunidade de rever a segregação da educação tecnológica do percurso de formação integral dos jovens portugueses e de, o que é mais, consolidar essa mesma segregação como algo colocado para além da própria discussão pedagógica e política.
Além disso, o documento combina uma linguagem progressista e outra derivada de preocupações pós-fordistas para legitimar estas políticas que acabam por reforçar aspectos de discriminação que, no caso dos cursos tecnológicos, o próprio pensamento educacional de matriz moderna já tinha posto em questão. É, assim, abusivo falar da escola secundária portuguesa (especialmente quando baseada em duas vias de estatuto social desigual) como uma "escola inclusiva e atenta à diversidade dos seus alunos" (p. 8).
O que nos preocupa neste documento e no dispositivo legal e pedagógico que dá pelo nome de "currículos alternativos" é que ambos parecem remeter para uma gestão controlada da desigualdade, no primeiro caso, e da exclusão, no segundo. Isto é, trata-se de políticas educativas que tentam gerir a desigualdade e a exclusão dentro dos limites impostos pelo sistema que as produz e que delas se alimenta. Por outras palavras ainda, as propostas para o combate à desigualdade e à exclusão desenvolvem-se sobretudo no terreno da regulação do sistema e não no espaço dos sujeitos, eles próprios. Estas políticas educativas, em vez de proporcionarem aquilo que é necessário aos sujeitos para a sua participação igualitária no desenvolvimento do seu potencial, encerram-nos em soluções que são meias-soluções: preocupando-se com aqueles que são normalmente seleccionados pela negativa, não lhes proporcionam todavia os meios necessários para uma integração que não seja pelo constrangimento das suas oportunidades na vida.

António M. Magalhães e Stephen R. Stoer

Investigadores do Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE) da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 87
Ano 8, Janeiro 2000

Autoria:

António M. Magalhães
Univ. do Porto
Stephen R. Stoer
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
António M. Magalhães
Univ. do Porto
Stephen R. Stoer
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

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