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Kubrick Morreu. E agora?

1960 - Seguro pelo sucesso de "Spartacus", Stanley Kubrik ataca "Lolita", o romance de Vladimir Nobokov.
Tem pela frente dificuldades de todo o tipo. Para começar, o argumento: Nobokov, primeiro recusou, depois, aceitou a proposta de Hollywood, escreveu um "script" de 400 páginas. Trabalhou-o com Kubrick, que o reduziu a metade. Nobokov retirou-se - mas o seu nome figura sozinho no genérico - e conhece a sua opinião, uma vez o filme acabado: "acho-o admirável, mesmo encontrando apenas parcialmente o meu primitivo trabalho". Como nos Estados Unidos do início dos anos 60, rodar um tema tão "quente"? Kubrick envelheceu propositadamente Lolita - Sue Lyon, adolescente, tem já um corpo de mulher - e fez do amor de Humbert Humbert uma excepção, enquanto que o romance exprime uma verdadeira "teoria das ninfetas".
Mas a censura oficial não é a única em cena. As ligas da virtude mexem-se só pela ideia da preparação de um "filme escandaloso". Por outro lado - e não é o pior da situação - numerosas mães de família desenvolvem todos os esforços para que a sua filha adolescente seja a escolhida para o papel, oferecendo assim um "remake" ao vivo de "Bellissima" de Luchino Visconti. Kubrick e James B. Harris, seu produtor - cúmplice, sentindo que a situação se torna praticamente impossível nos Estados Unidos, decidem realizar o filme em Inglaterra, onde a censura é menos virulenta (o que não deixa de ser irónico, pois "A Laranja Mecânica", ainda hoje aí não estreado).
Outro argumento em favor do exílio: a MGM tem fundos bloqueados - logo a dispensar - na Grã-Bretanha. Conhece-se o que se seguiu: todos os filmes seguintes de Kubrick tiveram a nacionalidade inglesa, e o próprio Kubrick estabelecer-se-á em Inglaterra, onde viveu e trabalhou até morrer, a 7 de Março p.p. Um exemplo, muito falado: sabe-se que todo o final de "Full Metal Jacket" - a longa cena com a atiradora vietnamita - foi rodada numa fábrica abandonada, nos arredores de Londres: como melhor afirmar que "Full Metal Jacket" é o anti-"Platoon"?
A partir daqui Kubrick torna-se ainda mais apaixonante do que se tivesse ficado nos Estados Unidos. Com graus diferentes, ele fez de cada um dos seus filmes, um filme contra os Americanos, com os seus actores e - o que é o mais saboroso da história - com o seu dinheiro.
Lolita, já é, via Nobokov claro, uma violenta sátira aos preconceitos sexuais e ao matriarcado triunfante nos Estados Unidos "Dr. Strangelove" permite-se ser, em plena guerra fria, uma violenta e impagável parábola de ficção política sobre a bomba atómica. "2001, A Space Odissey" abrirá um género - a ficção científica metafísica - para o fechar automaticamente (teve apenas um seguidor o belíssimo "Solaris" de Tarkovsky). Kubrick é o Átila do Cinema: por onde passa a erva não volta a crescer; percebe-se bem isso em George Lucas ("Starwars") que tentou em vão reencontrar a magia de 2001. Apostando na velocidade e na acção onde Kubrick apostou na lentidão e na contemplação. Kubrick abria todas as grandes portas do seu filme ao sonho do espectador, criança ou adulto. Ao lembrar hoje a estreia de "Clockwork Orange" (1971) espanta-nos a "novidade" da agitação da violência no cinema: o debate - se é que ele existe - foi aberto com este filme há... 28 anos. Depois houve "Barry Lyndon" crítica violentíssima ao arrivismo. Mas será com "The Shinning" que Kubrick bateu mais forte - tão forte que teve de cortar 20 minutos do seu filme - coisa espantosa da parte de um cineasta que defendia a propriedade absoluta sobre os seus filmes - depois de um princípio de exploração catastrófico nos Estados Unidos. Sem dúvida o público americano não se enganou: anunciaram-lhe um filme assustador, quando se tratava de uma reflexão sobre um género, no qual as imagens tradicionais dos filmes de terror - muito raras por sinal - apareciam como clichés. O terror - e que terror!!! - encontrava-se no outro lado. Por exemplo, no futuro monstruoso de uma família da classe média americana, vulgar e inconscientemente racista, enquanto que, o filme dizia, de uma forma clara que os Estados Unidos se tinham constituído sobre o genocídio (é esse o sentido, aqui a ser lido literalmente, do rio de sangue que invade a sala dos elevadores): outra razão provável da rejeição do filme, o mais belo (com 2001, é claro) de Kubrick.
Sem se ter ausentado do seu país, Kubrick não teria a mesma força nas suas propostas e na sua maneira de revisitar os géneros sobre os quais, o cinema americano se sente mais forte. Há neles uma inteligência do mais alto nível, aliada a uma perversidade q.b., como testemunhou Serge Daney neste exemplo: Kubrick contratou centenas de figurantes para a rodagem de "Barry Lyndon" e, em certo planos, filmou-os com uma teleobjectiva tão forte, que só deixava ver cinco ou seis em cada imagem...

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico
de Soares dos Reis


  
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Edição:

N.º 79
Ano 8, Abril 1999

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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