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Querido pai - para falar (em três tempos) das atrocidades da guerra e da ditadura

[crescimento]

Fizeste-me. Embora ninguém o queira dizer. Porque é a mãe quem faz o filho. Mas, eu sei, todos sabemos que me fizeste. A melhor lembrança de vida és tu. Com o teu silêncio, a tua distancia, o teu sorriso, as tuas palavras duras, as tuas indicações. O caminho das alternativas. Talvez, a reverência à mãe. O carinho que sempre vi, teres por ela. Esse carinho calado, orientador, receptor, que aceita e dá.
Fizeste-me. Com o teu corpo, é verdade. Mas com a tua paixão depois, é mais verdade ainda. A tua paixão pela mulher que me levou no seu ventre. Essa paixão que eu não vi, mas senti. Senti dentro do corpo da mulher que amavas, senti no teu respeito por ela, na tua entrega a ela. Na tua preocupação silenciosa por ela. Sem dizer a ninguém se era ou não difícil com ela lidar. Porque tu eras homem e ela mulher, essas duas diferenças que a sociedade marca e que a cultura hoje quer ultrapassar. Para definir uma igualdade impossível entre homem e mulher, entre pai e mãe.
Igualdade impossível pelas solicitações que o trabalho faz. Pelas solicitações que a natureza faz. Pelas solicitações que a memória histórica coloca sobre nós. Pela natureza que a cultura social forma sobre nós. E que, no entanto, eu fui capaz de observar ser bem repartida, bem dividida entre o pai e a mãe. Pelo carinho do pai, pelos mimos entregues à mãe, pelo profundo respeito que em casa existia nas conversas, nos objectivos, no que a mãe queria, pela aceitação da unicidade comprometida no compromisso dos dois. Pela calma e serenidade de ouvir a pessoa que devia ficar em casa a governar o crescimento de todos, pequenos e adultos. Pela aceitação das queixas da mulher que acompanhava no fazer seres humanos novos e os criar, ouvir, ensinar. Pelo respeito a esse corpo que punha corpos cá fora no mundo. E, especialmente, pelo silêncio de entender que no lar era a mulher a que dizia e mandava. Foi assim que, essencialmente, me fizeste.
Na observação dessa relação. Uma relação que, observei, foi cultivada entre a paixão, o amor e o carinho, esses três momentos da vida, ciclos porém, que permitem à relação se debruçar e perdurar. Com ajuda externa, como outros carinhos para apoiar o trabalho que o cultivo do carinho paterno marital precisa? Com o cultivo de outras relações heterogéneas de amizade e intimidade com outros seres no café, nos jantares, em outras intimidades? Talvez, talvez, talvez. E talvez, ainda bem. Ainda bem se ajuda a guardar o respeito da relação principal de homem mulher que, juntos, fizeram filhos a serem colocados no meio dos outros, no meio do social. Essa relação que em criança vemos e sentimos e só em adulto paterno marital, acabamos de entender.
Fizeste-me, porque nunca foi preciso tomar partido entre um ou outro: toda a desarmonia existia em silêncio, longe de mim. Não tenho memória, querido pai, de ver ou de ouvir um desencontro entre vocês. De certeza, houve, mas nunca exibido aos mais novos do lar. Entre os quais estava eu. Fizeste-me porque transferiste amor no teu agir. Bondade no teu agir. Distancia no teu agir. Hierarquia no teu agir. Hierarquia do que deve ser entre todos e do que deve ser só para os adultos. Eis a paz que tu próprio atingiste e que te fez viver tantos anos e à mãe, tantos anos também. Viver até ao dia de hoje. Dentro do mundo por vós feito para vós, esse mundo que foi ninho e o berço dourado da minha infância, dos meus sentimentos, Esse berço da infância, que me faz guardar a lembrança e cultivo do sentimento infantil e da infantilidade na ternura. Que faz guardar em mim o desejo de ser adulto e criança. Essa criança que é mantida viva pela tua cátedra de pai. Cátedra que criou os meus sentimentos e os desenvolveu até ao ponto de os transferir às minhas crianças e de procura-los nas outras. Que não me canso de observar e comparar com a minha própria.

[aprendizagem]

Fizeste-me homem. Porque tu eras masculino e transferiste essa masculinidade em sentimentos, em processo de cultivar a paternidade. E aprendi que devia trabalhar, mimar, ver, ouvir, calar e falar quando era preciso, primeiro com a mãe para falar depois com os filhos. Fiquei a saber o que os homens não devem dizer dentro do lar. Porque se dissemos, matamos a relação que é triangular: não é directa entre pai e filho porque é pai, mãe, filho. O mito que nos orienta já a mente humana o tinha definido: em silêncio o carpinteiro fazia o trabalho que o filho aprendia, enquanto a mãe lavava e o menino ouvia. Como a canção que se diz para o menino aprender: São José lavava, Maria pendurava a roupa e o menino chorava do frio que fazia. Essa canção de embalar transmitida de geração em geração, que aos meus filhos eu transferi e eles, um dia, transferirão aos seus. Com musica de Granados, com voz de lar, sem outros instrumentos que não fossem os latidos do coração, os murmúrios da voz, o quente do colo, a paciência de cantar outra vez adormece o meu pequeno, adormece o meu amor, adormece pedaço do meu coração. Palavras não entendidas, sentimentos sulcados pelo carinho retribuído no sono que aparecia. Na calma que esse descanso cuidado dava para recomeçar o novo dia.
Fizeste-me calmo para confrontar a vida dia a dia, sereno para ouvir o que devia ser decidido. E em paz para entender que pensávamos diferente, que a liberdade chegava um dia e eu tinha que ir aos meus assuntos enquanto tu ias aos teus. Esses teus que eu nem percebia, embora sabia. Sabia que havia dias em que tinhas que ser duro com os outros, que havia dias para optar sem perguntar, que havia um mundo mais largo a tratar fora do lar. Não para o lar andar, para o mundo andar. Esse mundo dentro do qual o lar também estava. Outra ideia que aprendi de ti, ideia do sentimento transferido: não era exclusivo o meu lar nem podia ser isolado, para ser lar. Pobre ou rico, de longa genealogia ou sem genealogia, de amigos ou sem eles, de autoridade ou submissão. Havia dias que eram para ti, ou momentos do dia que eram teus por seres social, cidadão, parente, vizinho, amigo. Eis a gentileza que fizeste para mim. Gentileza guardada no tempo que às vezes entra em conflito com a não gentileza, ou a gentileza diferente, dos outros. Gentileza que nem é, quando o adulto vive para si, quando esse adulto que vive para si tenta guardar os seus desfazer mandando bombas contra um povo que não tem a culpa de ter o chefe que tem. Quando esse adulto não teve um pai que soubesse entender a tríada da relação do lar e devota o seu tempo a matar aos seus concidadãos, a leva-los à cadeia, a exilar, a enriquecer, a vingar-se da sua vida pobre entre aristocratas ricos, tirando os bens dos ricos para se fazer rico na base da perseguição ás ideias. Essas que tu me ensinaste que deviam ser respeitadas até ao ponto de não fazer mal. Porque quando fazem mal, é preciso gritar, confrontar, deixar a gentileza e serena, mas autoritariamente, dizer. E dar um murro, quando for o caso.

[opção]

Obrigado pai. Assim entendo como a vida transcorre. Assim entendo que as bombas destes dias matam crianças. Assim entendo que quando a morte desses outros pais, tiver deixado crianças órfãs, esses adultos, com raiva, procurarão mais tarde a vingança e não o entendimento. Que tivessem ficado crianças a refazer uma vida em outro sítio, com o pai a sofrer e calar para criar a criança inocente da disputa, em paz. Que essas crianças ficassem sujeitas ao veredicto de adultos de outras ideias para poder reparar os crimes feitos contra eles. Esses outros que não entendem quando julgam, que há crianças envolvidas nos crimes contra a humanidade, crianças que não são lembradas nos caminhos que a justiça contorna para decidir sem se responsabilizar.
Pai, aprendi de ti que o adulto sempre se lembrava do pequeno, como tu de mim. Mas, diz, porque é que nestes dias históricos que vivemos, só se lembra o adulto que decide e julga os seus rivais? Porquê o mundo é partido em dois sem debater o plano que permita uma unigenitura para o desenvolvimento dos pequenos? Esse futuro de todos nós? Esse futuro que tu soubeste fazer comigo? E eu com os meus descendentes? Sei que não há uma resposta que me possas dar. Nem posso eu pedir. Só posso lembrar das tuas horas no compartir do lar para recuperar as forças que me permitam combater os que fazem mal às crianças, dos que não se lembram das crianças quando querem fazer o bem e a justiça. Porque, pai, não há justiça se as crianças não são lembradas por direito próprio, sem, pena nem caridade. O interesse do adulto está acima do seu próprio futuro, essa pequenada que sofre e não sabe dizer porquê é que sofre. E, quando procura o pai, e não o encontra porque está desaparecido, na prisão, morto, a servir às armas, pensa que todos os outros são os seus inimigos. Não podes responder porque ser pai é uma cátedra que nem todos sabem. E é de ti que aprendi que o que o pai não sabe, tenho eu que aprender. E lutar pelo que aprendi. Obrigado pai. Deixa só dizer que enquanto escrevo estas palavras para ti, meu opositor ideológico mas o meu professor nos afectos e nas ideias da justiça, oiço a metáfora de Händel no seu Messias. Uma metáfora esplêndida desse filho da história enviado à luta pelo seu próprio pai para levantar a espada e atacar aos que ferem, História metafórica que me delicia pelo tom musical da mesma. Esse tom que me dá animo para continuar a mexer.
Obrigado pai. É verdade que o nosso pensamento diferente orientou a nossa vida por vias diversas. Mas, é verdade também que o teu entendimento e sentimento de que o lar é essa tríada referida, tem-me permitido andar direito e em pé, apesar do sofrimento que as bombas e os ditados da lei causam em mim. Um beijo pai. Até ver. Continua a tomar conta da mãe. Ela sempre tomou conta de ti. A história guarde a vossa ternura para poder salvar as crianças das bombas e da falta de lar por falta de pai, ou de mãe, ou das pedras do cominho que aprenderam a conhecer na sua terra natal.

Cambridge, 25 de Dezembro de 1998

Raul Iturra
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) / Lisboa


  
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Edição:

N.º 76
Ano 8, Janeiro 1999

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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