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Sem infância

Lá fora chovia. Os miúdos trabalhavam compenetradamente. Olga verificava a ficha de Matemática que o Luís acabara de fazer.
- Minha senhora, lembra-se das bacias?
A pergunta surpreendeu-a. O que teria passado pela cabeça do rapaz? As bacias?
- Ainda bem que não precisamos delas. Não achas?
O encolher de ombros e um olhar algo absorto foram as únicas respostas que obteve.
- Vá, acaba de resolver os problemas e esquece as bacias.
As bacias... Olga sorriu. Aquele era de facto o primeiro Outono em que as bacias de plástico tinham deixado de colorir a sala, como uma espécie de peças decorativas que se distribuíam pelo chão mal começavam a cair as primeiras chuvas. Colocava-se uma ao lado da porta, outra no espaço destinado à biblioteca e uma terceira junto ao quadro. No átrio ficavam mais duas e na outra sala, vazia há coisa de cinco anos, um balde azul em cima da secretária ocupava o que outrora bem poderia ter sido o lugar de uma jarra florida.
Olga perdera a conta dos ofícios que teve de escrever para a Delegação Escolar, para a Junta de Freguesia e para a Câmara, a solicitar a reparação do telhado. Quantas horas esperara para ser despachada de repartição em repartição, ouvindo justificações, ordens e contra-ordens, algumas simpáticas, outras mais ríspidas, e todas cruéis para quem pensava que as crianças, qualquer criança, incluindo as suas, que frequentavam uma escola primária de uma freguesia nos confins de um concelho do interior do país, necessitavam de aprender num espaço digno e hospitaleiro. Um espaço onde pudesse acolher os seus alunos nas frias manhãs de um Inverno invariavelmente hostil, que alguns deles enfrentavam após caminhadas penosas pelos carreiros da serra. Um espaço que, mais do que as palavras, pudesse expressar como aquelas crianças eram importantes para aquela escola e para ela, a sua professora.
A morrinha, lá fora, continuava a humedecer a manhã. Deixara de ser preciso espalhar mais bacias pela sala. Tinha passado o tempo em que chuva, chuvisco e chuveiro eram talvez, naquela sala, das palavras menos sujeitas a qualquer erro ortográfico. Tinha passado o tempo das cartas enviadas para o presidente da Junta de Freguesia, pretexto para que os mais velhos escrevessem redacções colectivas que os mais novos acabavam por ilustrar. Tinha passado o tempo dos sorrisos e das bocas bem humoradas sempre que os problemas de Matemática obrigavam a calcular o preço das telhas. Tinha passado o tempo do som monótono que compassava o ritmo das manhãs chuvosas, como se de uma sinfonia minimal repetitiva se tratasse. Tinha passado um tempo que já sabia bem recordar, sobretudo, porque se sabia também que já não era obrigatório viver.
- Minha senhora, já acabei.
Era a Joaninha lá no fundo da sala. Olga levantou-se, relembrando ainda o aspecto daquele soalho pintalgado com bacias plásticas. Sentiu então a corrente de ar, naquele dia ligeira, que vinha de uma larga frincha na porta.
Vou ter de a mandar arranjar, pensou. E dirigiu-se na direcção da pequenita.

Ariana Cosme
Rui Trindade


  
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Edição:

N.º 74
Ano 7, Novembro 1998

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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