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A propósito de O Cavalo a Tinta-da-China

O último livro de Baptista- Bastos, O Cavalo a Tinta-da-China, é desconcertante por vários motivos, devido à sua falta aparente de coerência temática, da confusão (voluntária) das personagens, da inserção de micro-histórias na narração global e ainda da constante mistura de géneros literários, visto que o autor oscila constantemente entre ficção e ensaio. Este sentimento de desconforto não impede a leitura integral destas perto de trezentas páginas, sem dúvida porque já não se pode negar a importância dos problemas que o livro trata. Apresentemos três: - a percepção do Presidente do Conselho Salazar; a filosofia da existência enquanto tal; a reflexão sobre o acto de escrever e, por razões que serão esclarecidas mais tarde, daremos uma atenção particular ao último problema, porque encerra a própria definição do género romanesco.
Esta apresentação de problemas não é uma escolha a priori da nossa parte; com efeito, parece que o acto maior de Baptista- Bastos é, justamente, propor uma interrogação muito elaborada sobre o seu próprio trabalho de escritor. O sujeito do livro é constituído pela escrita, a escrita em si mesma. Seja com a sua companheira Clara ou com o seu amigo jornalista Reinaldo Ferreira, Francisco José Conde, de quem parte o projecto de redigir 'uma biografia romanceada de Salazar'(p.20) - projecto continuado pelo seu filho Manuel - não faz senão debater sobre as dificuldades inerentes à criação romanesca.
Alguns críticos viram nesta tentativa a vontade de 'traçar um quadro geral e rigoroso de Portugal nos anos 40', como o nota Serafim Ferreira (em Colóquio/Letras, nºs. 143-144). Mas se numerosos traços da sociedade portuguesa da época são reunidos, não compõem um conjunto coerente e não chegam para rodear a personalidade profunda de Salazar. O que não é em nada um falhanço da parte do autor, bem pelo contrário, tal manifesta uma estratégia da escrita. O halo de incerteza que envolve o retrato do ditador está sabiamente feito, porque desemboca sempre sobre a problemática ficcional: 'Estás a escrever alguma coisa? - Uma biografia romanceada de Salazar - diz Francisco José. - Como há muito poucas coisas sobre ele, tenho de inventar um bocado. Inventar tudo. Devemos inventar tudo, porque a realidade é uma coisa que não existe. O que existe é a realidade da nossa imaginação' (p.20).
Os factos históricos e biográficos que dizem respeito ao indivíduo chamado Salazar não são esquecidos (o escritor regista vários pormenores da sua maneira de viver e incorpora no seu texto uma quantidade de ideias partilhadas de todos os historiadores). Mas porque o protagonista trabalha à vez a língua (é revisor de provas no jornal monárquico e católico 'A Voz', p. 6) e a arte de contar histórias (como Reinaldo, escreve 'novelas de aventuras policiais', p.22), ele atravessa o seu objecto através de julgamentos estéticos sobre as qualidades estilísticas deste ou daquele escritor que lhe são familiares: 'Salazar desconhece as elegâncias mundanas do espírito, e rejeita as economias da elipse e da rapidez - escreve Francisco José Conde. Gostou da frase com que Reinaldo Ferreira definiu Aquilino e o seu estilo, e aplicou-a a Salazar: ambos da Beira Alta (p.21). As questões de forma intervêm assim em profusão no texto, enredando ao mesmo tempo a linearidade do texto e a coesão do retrato de Salazar visado. Clara está misturada estreitamente a esta problemática reforçada pelas interferências frequentes entre o exercício jornalístico e o projecto literário como é visto nas ideias de Francisco sobre o seu colega Fernando de Sousa,'de estilo compacto, demonstrativo e pouco elegante' (p.28).
Clara não é simplesmente a dupla inquisidora do seu companheiro; os seus diálogos ultrapassam o quadro da criação ficcional para acabarem nas relações entre os pais de Manuel. Para eles, este último apercebe a dificuldade que têm em comunicar (p.31); durante a vida de Francisco, ele fora uma zona de sobra para a esposa que nunca compreendera o seu ser verdadeiro. Isto é de uma importância vital para Manuel, que continua a intenção de escrever sobre Salazar. Porque do ditador ao seu pai, a distância é nula: quer um, quer outro foram 'um homem estranho' (p.30), cujo conhecimento mais adequado não depende da acumulação de dados verificáveis, mas de uma construção intelectual que vai ligar a ambos de fios múltiplos (sexualidade, projectos realizados ou abortados, filosofia pessoal, opções políticas) cuja rede tem um sentido.
A questão básica é a seguinte: que chamamos nós conhecer? Que caminhos podemos tomar para chegar ao conhecimento? Aqui desenha-se o recurso essencial que assegura a coerência geral do texto, quer dizer a sua interpretabilidade e compatibilidade semântica dos seus constituintes: 'querendo redigir um romance denso e minucioso sobre o ditador Salazar' (p. 6), os protagonistas (pai e filho) não procuram fazer um trabalho de biógrafo ou de historiador, eles praticam uma interrogação incessante sobre a condição humana. Se seguirmos as suas deambulações de consciência, torna-se claro que esta assenta numa base dupla: - a existência como sendo necessariamente co-existência, existência com os outros, a noção de moral tomada como um conjunto de normas que regem as relações inter-humanas está no centro desta interrogação. Encontramos a figura de Salazar, de quem Francisco escreve que foi 'um homem com um grande sentido de moral pessoal (p.45), mas acrescenta que ela é 'muito discutível' (ibid.). As relações com os outros são políticas - não é por acaso que as notas deixadas por Francisco mencionam abundantemente o 'Levítico' e o 'Pentateuco', que enunciam uma série de deveres (p.45-46) que interessam à filosofia do poder em geral - e erótico-sexuais. O seu conteúdo ainda continua problemático: Manuel olha para Clara: - Temos sido felizes, não temos? - Temos?' - lemos na p.45.
A segunda direcção que permite que nos orientemos sobre o sujeito da condição humana é o que podemos chamar de integridade moral e intelectual. 'O venerando marechal' Óscar de Fragoso Carmona define-a como 'a imensa força dessa coisa delicada e inacessível que nos homens se chama a consciência' (p.15). Mesmo se estas linhas qualificam Salazar, mesmo se o autor é 'um homem de pacatos prazeres e de gostos medíocres' (p.14), elas acentuam a importância do conceito de rectidão intelectual e moral. De uma maneira geral, as personagens de Baptista- Bastos fazem prova de um rigor extremo para elas próprias e para as outras. Elas partilham esse ódio ao compromisso que Francisco nota em Salazar. O autor nota além disso 'como todos os seus livros anteriores, a exploração obstinada de uma imensa derrota: uma palavra, ao princípio, que envereda pelo caminho do inferno' (p.66). Esta intransigência encontra-se evidentemente na produção literária ou jornalística do herói, Francisco, 'obstinado, tomava notas, escrevia, reescrevia, uma ânsia patética de perfeição e de idoneidade' (p.75). Esta procura da perfeição é portadora de um olhar crítico generalizado que também abarca a relação amorosa: 'O que nos aproximou foi esse até então inexprimível exílio de nós próprios' (p.89); a partir daí, um ponto comum a todos os heróis do escritor: o desencanto, consequência de uma dúvida hiperbólica, tanto mais que este trabalho analítico desemboca numa opacidade crescente, que leva Manuel a dizer: 'É o único retrato assim familiar que encontrou nos embrulhos que o pai lhe deixou. Tudo, afinal, são sombras, lavradas em pormenores que só cada um conhece e que outros podem em vão procurar' (p.115).
Dos protagonistas ao seu ponto de mira (o Ditador) só há um passo: 'A ideia que tive de escrever um livro sobre Salazar é uma fuga não sei bem para onde' (p.106). Poderíamos pensar que escrever é a melhor forma de nos enganarmos a nós mesmos; falamos de um outro para evitarmos falar de nós. Aqui não existe essa ideia. Neste livro, o termo Salazar é, com efeito, um procedimento onomástico. Ele é o objecto de uma motivação semântica naquilo que designa menos um indivíduo particular ou, mais amplamente, uma parte da história nacional que um modo de viver, de pensar, de sentir. Os linguístas (em particular S. Kripke, La logique des noms propres, tradução francesa, Éditions du Minuit, 1982, ou J. Lyons, Élements de sémantique, trad. francesa, Éditions Larousse, 1978) distinguem a referência como acto de tomada em relação de um termo da língua com um objecto extralinguístico que ele denota e o sentido, propriamente dito, a maneira como ele designa o referente; o próprio do nome próprio tendo um referente, mas que não tem qualquer sentido.
No domínio literário, não se passa a mesma coisa. O nome próprio é o centro de uma constelação de sentidos e conotações; o termo Salazar surge como um programa narrativo englobando as três perspectivas de leitura assinaladas no começo deste trabalho: 'É que meu pai deixou muitas notas destinadas a um livro, uma novela, talvez; um romance, não sei bem, sobre Salazar, sobre a época de Salazar, e eu queria continuar e concluir esse trabalho, sem me preocupar muito sobre a sociologia ou o rigor histórico. Limitar-me aos movimentos de superfície. Uma história de solidão dividida em outras solidões' (p.143). Este nome próprio catalisa assim as possibilidades de denunciar o existente nas suas contradições, os seus limites; o seu grau de compreensão; ele designa uma ordem social, um estilo de pensamento e de comportamento que faz sentido para o leitor antes que tome consciência daquilo que diz o autor. Deste ponto de vista, o nome em questão aponta, à vez, o rigor em matéria de costumes, a vontade de cristianizar o país totalmente, a miopia total no que diz respeito à evolução social. É igualmente, e mais ainda, 'um dos pretextos, claro... o insuportável peso de um nome' (p. 66). Porque é este nome tão insuportável? Porque encarna um ponto de fuga para o qual o romancista tende e que seria dotado de uma positividade absoluta. À volta de uma conversa, vemos esta confissão: 'Eu, pessoalmente, gosto de Salazar; o factor ordem tranquiliza-me' (p. 101). Claro, 'Salazar não é um homem feliz' (p. 98). Neste aspecto, ele constitui um anti-modelo sobre o qual é conveniente debruçarmo-nos para revelar uma outra norma de vida. Contudo, Salazar tem um elemento positivo: a necessidade permanente de submeter o comportamento e a realidade mental a um princípio. Aqui surge uma homologia essencial entre 'o mal de vivre' dos heróis e a dificuldade de escrever; ambos necessitam de pontos de arrimo, de uma submissão a uma linha organizadora que permita classificar, julgar. Não somente Francisco e Manuel não conseguem realizar os seus projectos, mas Baptista- Bastos, ele mesmo, participa no jogo, confessando: 'Viver com a Clara; com a Clara do Francisco José ou com a Clara do Manuel - afinal ambas minhas, ambas tão fugidias, tão distantes que não as apanho, que as não apanharei nunca. As coisas desmoronam-se e eu não sei quando é que, rigorosamente, isso começou a acontecer. Talvez devesse reconstruir os percursos' (p. 97). Antes desta última passagem, eis-nos regressados ao nosso ponto de partida: quem quer que tenha experimentado escrever ficção sabe, por experiência, que o maior obstáculo reside, precisamente, em pôr uma ordem no seu trabalho, na disposição de factos narrados de acordo com uma linha estrutural unívoca. É o que Jean Ricardou chama 'a escrita de uma aventura'. Mas também podemos propor ao leitor não a narração de uma série finita de acontecimentos, mas aquela das emboscadas que o escritor encontra durante a elaboração ficcional.
Vamos, pois, fazer uma 'aventura da escrita', quer dizer o registo pontilhado dos modos de produção do discurso narrativo. Contentar-nos-emos com alguns destaques: a) O discurso de que falamos não é mais do que o suporte linguístico que assegura uma narração de factos que lhe são, por natureza, exteriores; o discurso é aqui concebido como acontecimento. É 'o acto de narrar tomado por si mesmo' e o seu resultado não está, como habitualmente, no centro das preocupações escriturais. O discurso cria o seu caminho. Um caminho que nada tem de linear, que se desenvolve em 'flash-backs', em avanços concorrentes, em micro-histórias em que algumas funcionam como 'mises en abymes' daquela que forma o objecto inicial da narrativa (ver, por exemplo, o embrião de uma novela de que Francisco traça as primeiras palavras e que Manuel não chega a concluir, p.103 e segs.).
b) Esta pluralidade deixa-nos, naturalmente, num desconforto durável. Perdemo-nos no fluxo das ligações entre as personagens, nas reviravoltas, nas tomadas incessantes de componentes temáticas. 'Este é um chão a acabar debaixo de mim' (p. 137). Daí decorre uma filosofia do acto literário que não é nova, mas que surge em plena luz e à qual chamaremos o fantástico da escrita, consistindo este em 'manifestar no papel precisamente o que não pensamos, o que não chegamos a pensar, o que evitamos pensar' (Charles Grivel, Fantastique fiction, Ed. PUF, 1992, p. 37). Querendo escrever sobre Salazar, os heróis do romance tentam dizer quem são eles. A criação é de ordem fantástica naquilo que afecta a identidade pessoal. Se o livro apresenta este aspecto inacabado tão desagradável é porque 'tudo na vida é fragmento, retalho, marcos fictícios, vocações e despedidas, omissões' (p. 146). Desde logo, o que parece desajeitado, negativo, assegura o bom resultado do empreendimento; inscrevendo excertos de conversas, de 'monólogos silenciosos' (p. 147), fazendo-os tergiversar, o autor respeita o real do vínculo interior ancorado nas áleas imprecisas da história presente, fazendo uso, ao mesmo tempo, de um certo realismo.
Em matéria de literatura, pois, a distância que vai da anti-construção arquitectural à descrição pontilhada da vida interior como vida social do indivíduo é nula. O livro de Baptista- Bastos demonstra-o brilhantemente.


Pierrette Chalendar e Gérard Chalendar


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 71
Ano 7, Setembro 1998

Autoria:

Gérard Chalendar
Crítico Literário
Pierrette Chalendar
Crítico Literário
Gérard Chalendar
Crítico Literário
Pierrette Chalendar
Crítico Literário

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