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A professora avó

O ensino, especialmente às crianças, é uma das atividades mais sagradas da vida. É a transferência do que as pessoas pensam dentro da família e de como pensam os vizinhos: os que devem ser amigos e os que devem ser evitados por não saberem o comportamento adequado para tratar pessoas.
Está tudo definido no meu livro «O imaginário das crianças. Os silêncios da cultura oral» (Fim de Século, 1997), que teve uma segunda edição (2007), aumentada com a minha experiência a escrever outros livros sobre crianças ao longo de 10 anos. O que não digo em nenhuma das edições é que há uma forma de ensino pela imitação do comportamento dos adultos, sem eles perceberem que a sua forma de agir é calma e direta. Como aconteceu com a professora avó, que trabalhava desde manhã cedo até tarde na noite. A família não tinha recursos e todos os seus membros deviam contribuir. Conceição tomava conta das cabras, ovelhas e vacas e, mais tarde, trabalhou como empregada doméstica. Nos seus 20 anos, conheceu um negociante de gado de Vila Ruiva, que comprava as crias que ela cuidava. António Rodrigues Nicolau, sete anos mais velho, ficou rendido à prendada donzela, casou e levou-a para as suas terras, que ela aprendeu a trabalhar. De doméstica, passou a pastora e agricultora.

Maria da Conceição Videira tinha nascido em 1922, em Girabolhos (Seia). Em 1967, um cancro do estômago levou o marido à eternidade.
Eram tempos duros: o ditador de Portugal reinava, não governava; apesar de ser apenas ministro, sentia-se rei. O pão era guardado com cuidado e as sardinhas eram o alimento principal. Mas ela soube fazer comidas especiais para a descendência, que aumentou com o nascimento do Luís (1968) e da Anabela (1970) – viúva, tinha o tempo livre para tomar conta dos netos. A sua filha e o marido não tinham dinheiro e o genro, António Lopes, emigrou para a Alemanha, para ganhar tostões que poupava. Mais tarde, a Fernanda (sua mulher, empregada na escola) juntou-se-lhe, levando o filho mais velho. O ânimo era uma dádiva de Conceição: vai, menina, eu tomo conta dos netos. Luís passou três anos da sua vida na Alemanha e, no regresso, foi-lhe difícil adaptar-se às formas lusas de expressão. Conceição não puniu, nunca corrigiu. Sabia que, andando com os amigos e na escola, o Português ia aparecer rapidamente. Foi também assim que a segunda neta, Anabela, que num verão visitara os pais na Alemanha, aprendeu que é necessário envolver-se entre as crianças para saber mais. O dinheiro era necessário para os projetos dos senhores Lopes, e Conceição apoiou. Ela pagava os livros e a escola dos netos, para que o rendimento dos pais fosse todo investido no café e no mini-mercado, em que ela também trabalhava para ajudar os netos, que depois da escola prosseguiram estudos no Liceu de Nelas.
A avó professora ajudou-me a tratar das crianças da aldeia, recomendou-me para não os mimar tanto com sumos e bolachas. Como ela tinha feito com os seus netos, de quem passou a ser mãe durante os sete anos em que os pais estiveram emigrados. Não é preciso cursar estudos especiais para se ensinar. Ela tinha a segunda classe, mas muito amor pelos filhos e netos – a melhor lição que eles aprenderam na vida. Nos seus 90 anos de hoje, continua a colaborar no café e no mercado, porque o Luís e a Anabela cresceram e formaram as suas famílias longe de Vila Ruiva. Era Conceição quem sugeria formas de criar os netos e, a partir da sua experiência de avó professora, é ela que, ainda hoje, dá ideias para que o Luís e a Anabela saibam tratar dos filhos.
Os conselhos são oferecidos gratuitamente, com calma e serenidade. No foi preciso formar-se na escola de professores, como Anabela fez, para entender o que a própria Anabela entendeu e diz no meu livro «Como era quando não era o que sou. O crescimento das crianças» (Profedições, 1998). Entendeu a Anabela, aprendido de quatro antropólogos que por lá passaram, a necessidade de se envolver com as famílias das crianças para saber como é o lar e quais são as dificuldades da aprendizagem. Conceição já o sabia, e foi assim que os netos aprenderam a viver a vida, que não é um tormento quando se sabe viver em paz e harmonia, como fez esta avó professora que deu tudo aos seus filhos, netos e bisnetos.

Conceição Videira amou. Desse amor nasceu a sua docência sem palavras, com a exceção dos dias em que era necessário corrigir. Correções de amor e afetividade. Dona Conceição, agradeço o que me ensinou. Não apenas em palavras, mas pela minha observação do seu saber imiscuir-se na vida dos seus descendentes – de dois, saíram 10, e os que virão.
Daí a professora avó, que usa a calma para proferir lições em silêncio, dando a sua opinião apenas quando lhe é solicitada, ou quando observa que os pais António e Arnaldo abusam dos seus rebentos. As garras abrem-se, como se abriram para curar as doenças de Anabela na infância.
O meu louvor a esta mulher de cabeça branca, pensamentos diretos e carinho imenso pelos filhos, netos e bisnetos. Agradeço-lhes tudo o que fizeram por mim – tudo produto da escola Videira, que rima com vida. Que a sua divindade a guarde por mais anos, Senhora Matriarca, para em silêncio ensinar os hábitos e costumes da família!

Raúl Iturra

P.S. Texto escrito no dia de São João de 2013, que Conceição Videira me ensinou a comemorar com as crianças das redondezas e cujo significado está espalhado por vários textos meus.


  
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Edição:

Edição N.º 202, série II
Inverno 2013

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