Página  >  Edições  >  Edição N.º 200, série II  >  Cristo não teve em conta a grande perícia dos camelos

Cristo não teve em conta a grande perícia dos camelos

“Este é um tempo confuso, tão desconcertante e que tanto assusta e magoa de manhã à noite. Fomos enganados… e tudo por culpa de Cristo, da angelical boa fé de Cristo. Como escreveu Miguel Bauçã: Finalmente, provou-se, os camelos conseguem passar pelo estreito fundo de uma agulha. Venceram o desafio que lhes lançou Cristo, com uma surpreendente facilidade. Cristo não teve em conta a grande perícia dos camelos”.

O texto introdutório, assinado por Edgar Silva, deputado na Assembleia Regional da Madeira, é uma síntese do que se está a passar. Fomos enganados e há milhares que gostam. E continuam nessa tolerância, agora apavorados, com medo do futuro e, por essa razão, dispostos a escutar e a atenuar a insensatez da indigência política. Um tal Miguel Relvas diz: “O desemprego e o desemprego jovem tiram-me o sono. Não sou insensível”...
Coitadinho dele e das suas insónias, ele que passa, com perícia, pelo fundo da agulha, que aconselhou os jovens a terem os olhos no Mundo, que de uma forma eufemística disse à juventude: emigrem, não fiquem cá, vão ‘morrer’ para longe. Disse-o, faz algum tempo, em Penela, no centro interior de Portugal, onde a desertificação acontece, onde não é necessário o Governo sugerir a busca do ganha-pão além da fronteira, pois os próprios habitantes há muito assim decidiram. Acrescentou que se vive “um tempo de incerteza em Portugal como em toda a Europa” e que o país “precisa, necessariamente, de exportar e de encontrar novos mercados”. Precisa, no seu entendimento, de exportar a inteligência, os seus recursos humanos e, naturalmente, o que ainda consegue produzir.
Ao ministro Relvas, a quem o desemprego jovem tira o sono, não choca assistir a tantos, de qualidade, que exercem a sua atividade fora do país, jovens reconhecidos em variadíssimas áreas técnicas e científicas, obrigados a desempenhar lá fora o que os políticos não garantem cá dentro! Foi Miguel Relvas que um dia sublinhou: quando vejo os jovens lá fora, fica-me a “sensação de que a pátria deles é o momento onde estão, a circunstância em que estão”.
E nós toleramos. Conheço a situação da região onde vivo, exemplo da ‘exportação’ em massa tão do agrado do ministro. Na Madeira, nos dois últimos anos, e afora muitos académica e profissionalmente formados, 557 alunos saíram das escolas porque os pais não encontraram alternativa no quadro dramático de um desemprego que atinge 24.472 pessoas, equivalente a uma taxa de 19,7%. Conheço os Relvas que por aqui governam, que se governam e que conduziram este “cantinho do céu” a um cantinho do inferno. Faturas por pagar há quase seis anos, o que significa um fornecedor esperar mais de 2000 dias para ver a cor do dinheiro por um fornecimento ou prestação de serviço. E o que mais deixa estupefacto um cidadão cumpridor das suas responsabilidades é o presidente do Governo ter dito no cortejo satírico de Carnaval, com uma incomensurável desfaçatez política: “alguma vez me viu incomodado com as críticas”?
Pois, concluo, o dinheiro não é dele, as empresas não são dele e o desemprego é, porventura, da responsabilidade de Lisboa. Incomodados devem ficar os pobres desta terra (80%), todos quantos são duplamente espoliados pelas loucuras políticas cometidas em nome de um crescimento que não se transformou em desenvolvimento humano. É por isso que engrossa a listagem dos condenados à pobreza, que por extensão se reflete nas escolas, tornando-as remediadoras sociais? Que ausência de sentimento e de fuga às responsabilidades! Um exemplo: a Noruega, com 307.000 km2 e 4,2 milhões de habitantes, tem 173 km de vias rápidas; a Madeira, com 780 km2 e 265.000 habitantes, apresenta 140 km de idênticas vias. Isto é, a grande via do desenvolvimento que deveria assentar na Educação é hoje um beco, onde 85.000 pessoas não têm mais do que o 2º Ciclo do Ensino Básico.
Que espantosa obra!
O problema é que mudar de rumo não é fácil. As raízes são profundas e extensas, no sangue corre uma certa mentalidade de escravo, o analfabetismo existe e a Igreja não ajuda, apenas pede fé e oração. Mas, apesar da dificuldade, apesar do caminho ser muito estreito, penso que é possível romper este círculo vicioso, esta canga que colocaram no povo, este contínuo baile pesado, curvado e de nariz junto aos joelhos. É possível, se muitos da sociedade madeirense olharem para si próprios, deixarem os egoísmos e se libertarem deste pântano para o qual os Jardins e os Relvas os estão a conduzir.

André Escórcio


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

Edição N.º 200, série II
Primavera 2013

Autoria:

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo