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Poderá o decrescimento ser uma boa notícia?

A noção de “decrescimento” coloca radicalmente em causa o conceito de “desenvolvimento”, que deixou de ser solução e passou a constituir um problema. Tornaram-se evidentes alguns dos seus efeitos perversos, quer em termos das desigualdades sociais, quer em termos dos danos causados ao ambiente. 

A utilização do conceito de “desenvolvimento”, entendido sob a forma de “crescimento” económico, impôs-se na segunda metade do século XX como algo de inquestionável.
É uma palavra de que alguns de nós não gostam e da qual, ao mesmo tempo, não conseguem prescindir. Pode afirmar-se que estamos reféns de uma poderosa estrutura mental, resultado de um processo de naturalização que, em vez de nos ajudar a compreender a sociedade capitalista em que vivemos, nos desarma criticamente perante ela. A oposição entre “desenvolvimento” e “subdesenvolvimento” tende a substituir-se à oposição entre proletários e capitalistas, teorizada por Marx com base nos conceitos de “exploração” e de “mais-valia”.
Nos tempos que correm vem-se afirmando um estranho consenso em torno da bondade e necessidade do “crescimento” económico. É por oposição a este consenso que deve ser entendida a introdução da noção de “decrescimento”. Esta coloca radicalmente em causa o conceito de “desenvolvimento”, que, no espaço de algumas décadas, deixou de ser uma solução e passou a constituir um problema. Com este curto texto pretendo contribuir para um trabalho de subversão cognitiva, essencial para estabelecer uma rutura crítica com o capitalismo. A noção de desenvolvimento é marcada por um etnocentrismo que conduziu a impor à escala planetária uma maneira de “ver”, de “ler” e de “explicar” o mundo que é característica da chamada civilização ocidental.
Aquilo a que hoje chamamos “mundialização” representa a “ocidentalização” do planeta com base no que podemos designar por “ideologia desenvolvimentista”. Os referentes principais do “desenvolvimentismo” são os ideais da Razão e do Progresso, os quais sustentam uma confiança cega nas potencialidades de a ciência e a técnica se traduzirem, através das suas aplicações, em níveis crescentes de produção de bens e de serviços, o que contribuiria para um acréscimo de bem-estar para o conjunto da humanidade.
No início dos anos 70, a coincidência do primeiro choque petrolífero com as crises de produtividade e de governabilidade das sociedades capitalistas (a ocidente e a leste) marcou o fim de um ciclo marcado pelas “ilusões do progresso”. A construção de sociedades da abundância, alargadas à escala planetária, faria desaparecer o fosso que separava os países “desenvolvidos” dos chamados países periféricos, marcados pelo “subdesenvolvimento”.
Da euforia deslizou-se para a deceção e, finalmente, para a verificação de que vivemos em sociedades que alguém designou por “doentes do progresso”. Tornaram-se evidentes alguns dos efeitos perversos do desenvolvimento económico, quer em termos das desigualdades sociais, quer em termos dos danos, por vezes irreversíveis, causados ao meio ambiente. Também se tornaram claros os limites ao crescimento, decorrentes do caráter finito dos recursos naturais. Esta “doença do progresso” não significou o abrandamento do desenvolvimento e crescimento económicos à escala mundial. A reconhecida falência do modelo ocidental do “Estado de Bem Estar” é coincidente com um aumento constante da capacidade de produzir riqueza material, tendo por base acréscimos de produtividade resultantes de novas formas de organização do trabalho e da incorporação do conhecimento científico e técnico nos processos de produção. Os acréscimos de produtividade, coincidentes com o enfraquecimento dos movimentos sociais e a perda de poder dos sindicatos, traduziram-se em níveis acrescidos de exploração do trabalho, bem como num aprofundamento das desigualdades sociais. A ideologia “desenvolvimentista” foi sujeita a uma forte erosão como resultado de uma pluralidade de críticas que, embora divergentes nos seus fundamentos, coincidiram nos seus efeitos. Porém, o desenvolvimento económico enquanto sistema conceptual e como modelo de referência para pensar e organizar a vida social não foi, no essencial, afetado. A sua sobrevivência foi acompanhada e favorecida por metamorfoses de caráter semântico, que, adjetivando o conceito, alimentaram a ilusão de que “um outro” desenvolvimento é possível. Trata-se do mesmo tipo de mistificação que consiste em imaginar que “uma outra” mundialização é possível sem que seja posto em causa, de forma radical, o sistema vigente de exploração do trabalho humano. É assim que, nas últimas décadas a ideologia do desenvolvimento se reformulou sob a capa dos adjetivos de “sustentável”, “alternativo”, “durável” e “local”. A adjetivação da palavra “desenvolvimento” não só não muda a sua natureza, como se constitui como um obstáculo para, com lucidez, compreender os limites da nossa ação e libertar o nosso imaginário social para construir realidades novas.
A organização social subordinada à lógica de produção de mercadorias desvaloriza e elimina tudo o que, sendo do domínio da autossuficiência, da solidariedade desinteressada e da expressão de si, põe em causa o poder do dinheiro e as várias formas de dominação que o acompanham. Poderá esta verificação inspirar-nos um outro vocabulário para pensar os processos instituintes de mudança social?

 Rui Canário


  
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Edição:

Edição N.º 200, série II
Primavera 2013

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