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Quem falou de re(a)fundação do Estado social?

O tempo corre tão célere e tão preenchido de surpresas que já não consigo saber nem quando, nem como, nem quem falou da (seria necessidade?) de refundação do Estado social. Depois disso, mas nem sempre a propósito disso, tem-se assistido a um desfiar de opiniões, análises e prognósticos que chamam a atenção para conceções e visões sobre práticas tão díspares que, em permanência, permitem fazer passar da refundação à re(a)fundação.
Num país onde ainda não se dispensam por completo as perspetivas dos cidadãos e cidadãs, resolvi escrever um punhado de lembretes, caso a discussão venha a ser feita para além do inefável corte de quantos milhões? Já lhes perdi a conta…

1. Quando se fala de Estado social em Portugal, de que tipo de prestações, bens e serviços se está a falar? Recordemos que o seu desenvolvimento nunca fez dele um Estado social suficiente, pese embora o papel que visivelmente tem sido tão relevante na consagração de direitos sociais – que por demasiado longo tempo estiveram suprimidos em Portugal. E foi até a propósito da afirmação destes, que outros direitos se reforçaram.
Importa saber que os direitos funcionam como um sistema de vasos comunicantes, onde a elevação ou redução de qualquer um deles tem consequências nos outros.
A dignidade humana da população idosa foi mais e melhor respeitada quando, por exemplo, em Portugal, entre 1994 e 2010, a taxa de pobreza nesta população baixou de 38 por cento para 20%, sendo este, apesar dos avanços, um patamar não aceitável.

2. Importa debater onde chegam e onde não podem chegar as medidas emergenciais. Desde sempre, o Estado social teve que lidar e de garantir medidas de caráter emergencial. Com estas se fazia face às situações imprevisíveis ou mesmo àquelas que não tinham alcançado o estatuto de problema social reconhecido. De facto, o número e diversidade de problemas sociais são sempre maiores do que as medidas para o seu enfrentamento.
Outra coisa é direcionar para problemas sociais explícitos, previsíveis e de natureza persistente, medidas marcadamente provisórias e de caráter discricionário. Há nesta “solução” vários erros de conceção, mas também de gestão. Desde logo, porque responde ao permanente com a provisoriedade, mas também porque atua como se gerisse soluções e menos atenções parciais, “de entretanto”, e a exigir que se olhe o fulcro dos problemas.
Não se visa negar o papel das ações emergenciais. O que importa lembrar é em que condições se justificam, a que situações se adequam, de que recursos se servem e que garantias subscrevem. Dito de outro modo, a emergência só define uma parte (ínfima e provisória) com que o Estado social lida e não tem amplitude, nem vínculo, nem alcance para ser invocada como a resposta, nem mesmo em tempos de crise.

3. O Estado social é só para os (mais) pobres? Esta é outra dimensão, que vem sendo abordada como fazendo parte do léxico dos referenciais do debate. Neste argumentário cabem as razões de que já que não pode ser para todos… Então que seja para os que mais precisam…
Mas qual é a evidência de que não pode ter orientação universal? Em geral, invocam-se os custos e não os benefícios desta orientação, que, obviamente, depende muito da justeza do sistema fiscal. A evidência dos resultados de um Estado social que é só para pobres está bem traduzida na constatação de Titmuss quando afirmou que serviços sociais para pobres não são senão pobres serviços sociais.
Ainda neste campo, para o efeito de distinguir entre quem cabe e quem não cabe, importa perguntar quem são os pobres? Por onde passa a linha divisória que separa os abrangidos dos outros? Que susto cívico é pensar que, a todo o momento, se escolham os mais dos mais pobres, dentro destes os mais no fim da linha e, se necessário for, ainda se pode destrinçar entre os pobres merecedores e os não merecedores.
Fica o lembrete: e não se pode pensar o alcance universal? Que pilares o podem/devem (re)estruturar?

4. Quero ainda lembrar-me da sustentabilidade.
A par de outros, tornou-se um conceito (às vezes, só uma palavra) frequentemente usado, mas pouco discutido.
É de interrogar o uso do critério da sustentabilidade quando se quer, sobretudo, apontar os malefícios do abaixamento dos recursos disponibilizados para o Estado social. Convém começar a reflexão pelo princípio – recomendação pleonástica, esta de começar pelo princípio!… O que poderá ser o princípio? É seguramente a reflexão sobre a base de tributação consignada ao Estado social. No presente, contar apenas com o que se capta pela via do trabalho, deixa de fora todas as múltiplas formas de criação de riqueza, que, sendo social, é por isso tributária da exigência de compromisso com os problemas e os riscos sociais.

5. Apesar de ser dos exercícios de reflexão mais difíceis (e até falíveis, quando dizem respeito à realidade social), os debates sobre o Estado social têm tido a tentação de pensar o futuro. E então vão projetando, com a ambição de criar um outro quadro para um outro tempo e para uma outra conjuntura. Mas, no campo das questões sociais, além de não existir a possibilidade de suspender a realidade presente, é a capacidade de bem lidar com esta que nos projeta num futuro melhorado. Isto faz-me sentido e permite concluir que uma boa forma de vínculo ao bem-estar de futuro é cuidar dele a partir do presente.

Acho que teria material para elencar um decálogo de lembretes, mas espero testar com estes cinco a possibilidade de uma outra base para a agenda do debate do Estado social.
Se os tempos de crise são tão invocados pelo seu potencial de oportunidade (quantas vezes só semanticamente visíveis), então, julga-se que todos os cidadãos e cidadãs devem manter sob mira a sua lista de lembretes para o Estado social, não vá que a qualquer momento sejam interpelados como contribuintes não só de impostos, mas também de ideias e propostas societais.

 Fernanda Rodrigues


  
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Edição:

Edição N.º 200, série II
Primavera 2013

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