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Escola Pública e Democracia: um percurso pedregoso

Uma escola que define a qualidade do seu ensino por uma visão enciclopédica de um conhecimento cuja utilidade se esgota nos testes serve, afinal, para quê?

Será que a defesa de uma Escola Pública congruente com os princípios e os valores de uma democracia pode ficar circunscrita, apenas, à denúncia da deterioração das condições de trabalho, do aumento do número de alunos por turma, da imposição de uma cultura de avaliação meritocrática, da burocratização da vida e das relações em instituições sobredimensionadas ou do empobrecimento dos currículos?
Na nossa opinião, tal denúncia é necessária, mas não suficiente.
Há outras questões que, admitimos, mais do que denunciadas, têm de ser discutidas com ponderação nos locais próprios, que são as escolas. É aí que, temos de reconhecer, por muito que nos doa, para além do Ministério da Educação, também alguns de nós, professores, temos vindo a contribuir para que as escolas se afirmem como espaços de seletividade académica, onde se desperdiçam talentos e potencialidades em nome de uma alegada formação de elites que se afirmam mais pela mestria com que usam os códigos escolares, e pela familiaridade demonstrada na relação que estabelecem com os rituais e idiossincrasias das escolas, do que propriamente pela excelência intelectual das atividades e dos trabalhos em que esses alunos se envolvem.
Longe de nós pretender defender que a construção de uma Escola politicamente mais democrática, socialmente mais justa e culturalmente mais significativa é uma tarefa fácil e com resultados visíveis e imediatos. Longe de nós pretender defender que a atividade docente é uma atividade para super-homens e supermulheres que, pelo facto de o serem, nunca erram ou raramente têm dúvidas. Longe de nós ignorar que todos os dias, e sem pedir licença, a pobreza, o desamor, a negligência, o sofrimento e a falta de esperança e de horizontes de alguns dos nossos alunos nos entram pela sala dentro. Longe de nós ignorar, também, que muitas vezes estamos sozinhos neste combate desigual.
Sabemos tudo isso e muito mais, mas teremos que decidir se este conhecimento deve servir para justificar a nossa impotência ou para tentar identificar o nosso espaço de manobra como docentes.
A opção pela primeira estratégia enunciada muito dificilmente nos conduzirá a superar um registo reivindicativo cujo propósito final consiste em legitimar o que não se faz e porque não se faz, enquanto o registo da segunda opção tende a ser construído em função da reflexão sobre o que se pode fazer e as diferentes possibilidades de o fazer. Comparativamente, esta última decisão é mais exigente em termos profissionais, podendo contribuir, no entanto, para aumentar a probabilidade de os professores manterem uma relação mais significativa e gratificante com o trabalho educativo que desenvolvem.
Se a opção por um registo ou por outro não é, assim, uma opção indolor, importa compreender também que ela não é dissociada do modo como pensamos a nossa relação com o mundo e com os outros, em função da qual se define o modo como nos sentimos e definimos enquanto professores.
Certamente que educar não é uma tarefa que possa ser atribuída apenas à Escola, e tudo seria mais fácil se todas as famílias assumissem as suas responsabilidades neste domínio. Este é, no entanto e como bem sabemos, um desejo irrealista. Daí que fosse necessário que nas escolas – ou pelo menos nalgumas escolas – houvesse equipas multidisciplinares competentes e suficientemente habilitadas para ajudar os professores a lidarem de forma mais consequente e eficaz com os alunos e com as situações problemáticas que acontecem nas escolas. Há quem pense que este é também um desejo irrealista, o que significa que está na hora de as escolas mostrarem, através de factos e números fundamentados, que é, acima de tudo, uma necessidade urgente. Tudo seria mais fácil, também, se os problemas de indisciplina dos alunos fossem objeto de uma análise mais criteriosa por parte das escolas, logo a partir das suas primeiras manifestações, permitindo identificar esses comportamentos de forma contextualizada, explicar as suas possíveis causas e implementar as medidas que se adequassem à análise realizada. Também este não é um desejo irrealista – terá de ser concretizado pelos professores, mesmo que, para isso, tenham de contar com o apoio necessário de quem os possa e saiba ajudar a realizar tal tarefa.
Sabendo que nem todos os problemas têm solução, nem se resolvem sempre desta maneira, sabemos também que, se começarmos a navegar com bússola e apoiados em cartas de marear, teremos mais possibilidades de ajudar alguns dos nossos alunos a encontrar caminhos que, de outro modo, não se encontrariam.
Defender o que estamos a defender não significa que poderemos prescindir da firmeza como instrumento educativo; significa, apenas, que esta não poderá ser resultado de um exercício cego e arbitrário de poder numa Escola sem significado pessoal e cultural para os alunos e, porque não dizê-lo?, para muitos dos seus professores.
Esta não é, contudo, uma tarefa fácil, que possa ser discutida através dos jornais, de forma descontextualizada ou tendo como pano de fundo o apelo à expulsão das escolas de todos os alunos problemáticos, até porque precisamos de ampliar a reflexão e discutir, se na verdade, as escolas fazem tanto como poderiam fazer para que estes alunos tivessem oportunidade de mostrar a sua faceta mais humana.
Uma escola que vive refém dos manuais, que convive sem remorsos com a aplicação de regras sem sentido e que funciona em função de lugares-comuns que determinam expectativas irrealistas para um número significativo dos seus alunos, é uma escola que terá de se repensar como Escola. Uma escola que avalia os seus alunos para determinar o que eles não são capazes de fazer, ignorando o que eles já aprenderam a fazer, é uma escola que só serve para alguns. Uma escola que, perante alunos em dificuldade, propõe planos de recuperação academicamente inócuos, atividades de apoio pedagógico que insistem em preservar as condições que geraram aquelas mesmas dificuldades e que afirmam o seu sucesso através de um registo em que o menos é considerado mais, só serve para criar a ilusão de uma oportunidade que esses alunos, de facto, nunca tiveram. Uma escola que define a qualidade do seu ensino por uma visão enciclopédica de um conhecimento cuja utilidade se esgota nos testes serve, afinal, para quê?

Ariana Cosme
Rui Trindade


  
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Edição:

Edição N.º 200, série II
Primavera 2013

Autoria:

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