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Uma sombra sobre a educação pública?

Se a educação é cada vez mais um mecanismo para atribuição de recompensas a partir do sucesso no exame, a ideia da educação como base para o desenvolvimento de comunidades positivas e mutuamente apoiantes pode ser seriamente afetada.

Observamos, ainda, a desarticulação formal entre estes desenvolvimentos paralelos e as políticas europeias oficiais e normais, plasmadas nos documentos programáticos produzidos pelas instituições do sistema político europeu: Conselho, Parlamento, Comissão.
Constatamos, então, sem margem para dúvidas, que as opções de sacrificar a população e a sociedade portuguesas são ainda parte do sinuoso e armadilhado processo de europeização, hoje sob hegemonia do fundamentalismo neoliberal. Como se estivéssemos perante a consumação desse lado encoberto, que sempre esteve atuante, de uma integração subordinada das periferias, com todos os custos que neste momento experimentamos.
Neste quadro de dura confrontação política, o projeto neoliberal de alteração radical do regime democrático do Estado de bem-estar, atualmente dominante na UE, vem conseguindo suspender a incipiente democracia que aí vigora, neutralizar o seu sistema e instituições políticas formais e impor as prioridades dos interesses financeiros e desta espécie de guerra monetária e económica servida por governos e governantes (os que decidem e os outros) em exercício.
Vivemos, em Portugal, uma fase do processo de europeização da educação, marcado pela integração subordinada e periférica do país numa União construída (ou minada) sob a hegemonia do projeto neoliberal abertamente voltado para a dualização económica e social da Europa.
Como ocorreu em países dos continentes sul-americano e africano submetidos à ditadura da dívida e às soluções austeritárias do chamado ajustamento estrutural, aquele projeto é imposto mais severa e radicalmente nas periferias agora abaladas pela consumação do desmoronamento da economia, em sociedades onde os direitos são mais recentes, as instituições políticas e democráticas mais frágeis e as desigualdades e assimetrias não cessam de reforçar-se e crescer.
O designado projeto europeu assume hoje, para as periferias, a face nua do capitalismo neoliberal radical, determinado, na sua visceral desumanidade, a impor a regressão civilizacional da aniquilação dos direitos sociais e humanos para a maioria e o totalitarismo da mercadorização integral da vida.
Neste cenário de dualização económica e social, a europeização da educação, como consumação de um destino de integração periférica subalterna do país, ameaça reconduzir-nos inexoravelmente a uma rota de subdesenvolvimento, internamente secundada pelo centenário projeto das elites de obscurantismo programado da população portuguesa, que as forças favoráveis à democracia não conseguiram neutralizar em quase 40 anos.
Neste futuro às arrecuas que nos é servido, avoluma-se perigosamente o risco de incumprimento do contrato social da democracia com o povo português e os cidadãos europeus, em particular do Sul; conter o défice social e político em progressão galopante no nosso país é a meta que convoca todas as forças e todas as lutas dos educadores, dos pedagogos e ativistas para tornar possível mudar de futuro.
Foram publicados recentemente dois relatórios sobre o fenómeno da “escola-sombra”, ambos da autoria de Mark Bray, da Universidade de Hong Kong – um pela União Europeia (UE), outro pelo Banco de Desenvolvimento Asiático (BDA).
A metáfora da sombra é usada para referir a existência de um setor paralelo à oferta educativa, destinado a completar o que os alunos já dispõem nos sistemas escolares regulares. Ao invés de proporcionar algo diferente, como por exemplo o ensino da música, a “escola-sombra” tem como objetivo melhorar os resultados dos alunos no currículo “normal”. Outro aspeto é que os pais pagam o serviço diretamente, quer a explicadores individuais, quer a organizações especializadas.
Mas o que é importante investigar mais profundamente é a globalização do sistema em dois continentes e em sistemas políticos distantes uns dos outros.
Serão as “sombras” e os sistemas que refletem os mesmos em ambos os lugares? E o que nos diz o aparecimento deste fenómeno sobre a natureza e os objetivos da educação, especialmente quando organizações como a UE e o BDA parecem tão interessadas nele?
Podemos ter uma ideia da extensão do fenómeno a partir de alguns números extraídos dos relatórios referidos.
Em França, em 2009, o setor foi estimado em cerca de dois milhões de euros; na Alemanha, em 2010, consumiu entre 942 e 1.468 milhões de euros. Em Portugal, 55 por cento dos candidatos aos exames nacionais de acesso à universidade tiveram explicações entre o 10º e 12º anos, enquanto no Reino Unido, aproximadamente 12% de alunos de escolas do 1º Ciclo e 8% dos alunos do Ensino Secundário têm explicações. No Bangladesh, 37,9% dos alunos do 1º Ciclo, 68,4% dos do Secundário e 80% dos estudantes do 10º ano tiveram explicações (2008).
Em Bengala Ocidental (Índia), o custo das explicações privadas nas escolas públicas foi estimado em 21,5% do custo total da educação de uma criança.
Nos EUA, uma pesquisa de mercado (2008) estimou, a partir das empresas que oferecem o serviço de tutoria, a dimensão do setor em 6,4 bilhões dólares e previu um crescimento anual de 15% nos quatro anos subsequentes.
Estes números – tanto de sistemas educativos “com sucesso” como de sistemas educativos “mal sucedidos” – demonstram um nível muito alto e generalizado de interesse e investimento dos pais na educação e no futuro dos seus filhos. De forma similar, a conclusão mais surpreendente e contraintuitiva em ambos os relatórios é que os beneficiários típicos da “escola-sombra” não são as crianças que estão falhar na escola, mas as que já são bem-sucedidas, das famílias da classe média. Isto aponta para os principais motores do fenómeno – o crescimento global dos testes de alta exigência e a ansiedade parental que geram, pelo medo de que o fracasso dos filhos conduza a um fracasso na vida.
A questão de quem fornece a “escola-sombra” também é altamente controversa. Muitos dos explicadores são professores no sistema a tempo inteiro; às vezes, especialmente em países onde o salário dos professores é muito baixo, os mesmos professores ensinam as mesmas crianças na escola e, depois, nas explicações.
Outro aspeto fundamental da oferta de “escola-sombra” é o rápido crescimento das redes, muitas vezes internacionais, de fornecedores destes serviços, que podem começar a corroer, ao invés de complementar, o provisionamento público da educação.
O aspeto mais importante da “escola-sombra” é a sua implicação para os sistemas de educação, no que diz respeito a oportunidades mais equitativas para todos, e para a ideia da educação como um bem público, igualmente acessível a todos, contendo um conjunto de experiências a partir do qual toda a sociedade pode beneficiar.
Se a educação é cada vez mais um mecanismo para atribuição de recompensas a partir do sucesso no exame, então a ideia da educação como meio de forjar uma base para o desenvolvimento de comunidades positivas e mutuamente apoiantes pode ser seriamente afetada, levando-nos ainda mais perto de uma nova forma de guerra de todos contra todos, em que a sombra é projetada pela corrida até ao topo, em vez da luta para evitar a corrida para o fundo.

Roger Dale


  
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Edição:

Edição N.º 198, série II
Outono 2012

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