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Um abrigo na desolação

“A Estrada” – filme de John Hillcoat (2009) baseado na obra de Cormac McCharty com o mesmo nome (2006) – mostra-nos um mundo novo, terrível, violento, desumano, ao mesmo tempo que faz reflectir sobre privilégios de que dispomos, que damos por garantidos, mas a que muitos não têm acesso. As crianças maltratadas encontram-se nesse grupo desprotegido. Este texto procura estabelecer uma relação entre o filme e o acolhimento familiar, enquanto conceito e medida de colocação.

O acolhimento familiar (AF) parte do pressuposto de que o bem-estar e a educação de uma criança são mais bem prosseguidos num ambiente familiar. Se a criança tem o desenvolvimento ameaçado no seu contexto de vida, regra geral junto da sua família biológica, será preferível encontrar-lhe uma família de substituição que a integre num grupo constituído por um pequeno número de pessoas que partilhem entre si laços de afectividade e de privacidade. O AF assenta na ideia de que a criança tem a necessidade e o direito de viver num espaço familiar personalizado, que as instituições, muitas vezes sobrelotadas, não podem proporcionar. São muitos os países que têm procurado assegurar que o AF seja a colocação preferencial nas situações de retirada da família, perspectiva que tem fundamentalmente em conta as necessidades da criança.

“Um pai e um filho caminham sozinhos pela América. Nada se move na paisagem devastada, excepto a cinza no vento. O frio é tanto que é capaz de rachar as pedras. O céu está escuro e a neve, quando cai, é cinzenta. O seu destino é a costa, embora não saibam o que os espera, ou se algo os espera. Nada possuem, apenas uma pistola para se defenderem dos bandidos que assaltam a estrada, as roupas que levam vestidas, comida que vão encontrando – e um ao outro. A Estrada é a história verdadeiramente comovente de uma viagem, que imagina com ousadia um futuro onde não há esperança, mas onde um pai e um filho, cada qual o mundo inteiro do outro, se vão sustentando através do amor” [sinopse do livro em www.wook.pt]. A história coloca-nos num mundo transformado, inóspito e desolador. À semelhança da obra em que se inspira, não há uma explicação para o sucedido nem uma tentativa de interpretação das causas do apocalipse. Naquele mundo não há tempo nem espaço para esse tipo de reflexões, a sobrevivência é uma tarefa a tempo inteiro. O enfoque é o comportamento humano em situações-limite e, neste sentido, o filme é estranhamente familiar, porque nos recorda paisagens como o Norte de África, o Haiti depois do terramoto e outros cenários devastados por cataclismos de várias origens. As filmagens decorreram, aliás, em cenários reais, como nos bairros afectados pelo furacão Katrina (2005). Assinala-se, todavia, uma diferença, uma enorme diferença relativamente àquelas paragens, uma vez que, aparentemente, toda a vida na terra foi afectada, destruída, na sua flora, na fauna e na vida humana. Ninguém pode ajudar, como sucede na sociedade violenta que Saramago criou no «Ensaio sobre a cegueira» (1995), ou quase ninguém, como constatamos no final simultaneamente belo e doloroso. A Estrada propõe-nos um exercício de reflexão que obriga a olhar para a realidade de um modo diferente. O que tomamos como certo, como a estrutura social, os valores, a moral (em suma, a nossa organização cultural), pode falhar. Como se vive num contexto diferente e totalmente perturbador, em que tudo o que sustém a existência tal como a vivemos, nomeadamente a família, o amor, a economia, a propriedade, a lei, a moral, a ética, a arte, perde qualquer significado e utilidade? Na verdade, já vimos um mundo assim, pressentimo-lo, pontualmente, nos noticiários e nos sem-abrigo que circulam em todas as cidades. Na estrada, de repente, estamos no lugar do outro, porque só esse outro existe, todos são (somos) o outro. Que paralelo se pode estabelecer entre a história narrada pela película e o AF?

Na verdade, são muitos os pontos comuns, de um ponto de vista metafórico. A estrada que a criança percorre com o pai, até ao momento da sua morte, coloca-a face a um dilema: acreditar ou não acreditar nos outros, na família que se oferece para a acolher. O mundo caótico que a rodeia representa, simbolicamente, o meio onde a criança maltratada vive e que, necessariamente, afecta a sua organização interior. O acolhimento representa, com frequência, uma oportunidade de aprendizagem, de reconstrução num espaço seguro e protector, simbolizado no filme pelo casal com dois filhos e o cão, testemunhos vivos de um mundo perdido. Mas não é fácil para a criança acreditar, depois das vivências com o pai ainda tão presentes, tal como sucede, aliás, numa transição após a retirada, quando a criança passa a viver acolhida num mundo diferente daquele que conhecia e que era necessariamente caracterizado pela negligência, desorganização ou violência. Hillcoat diz que o filme é como uma fábula sobre a bondade humana. E sobre a maldade humana como uma forma de mostrar essa bondade. Independentemente das circunstâncias (e dos resultados), os acolhedores devem proporcionar à criança um ambiente caracterizado pela estabilidade, pela segurança, pela atenção e pela empatia, de modo a conciliar áreas tangíveis com áreas intangíveis, como a gestão da dor e da perda. A gestão das memórias é outra questão-chave na história, tal como sucede no AF. O piano numa das casas abandonadas transporta o pai para recordações felizes de momentos vividos com a mulher, mas também para a dor, quando recorda o momento em que destroem o piano porque precisam de lenha para se aquecerem. É ainda a memória esmagadora do mundo que se desmoronou, fantasma omnipresente que assombra o percurso dos últimos sobreviventes, com cidades, carros, casas e centros comerciais destruídos e incendiados – vestígios remanescentes de outra época, ironicamente simbolizada pela descoberta da última lata de coca-cola, esquecida numa máquina automática de bebidas. A paternidade é a relação familiar que se destaca na história, só temperada no final, quando a criança é acolhida por uma família com uma mãe. O autor do livro dedicou-o ao filho; o realizador dedicou-o também ao filho, reflexo de uma história que relata o amor entre pai e filho. É a mãe que desiste, que abandona. Como sucede, também, por vezes, na vida real, é o pai que cuida, que acompanha, que protege, invertendo-se os papéis e a imagem tradicional da filiação. Assistimos a uma lenta agonia, ao desespero, ao sofrimento, à tristeza avassaladora de um homem que perdeu toda a razão de viver, excepto manter-se vivo para que o filho sobreviva. No acolhimento, os desafios são enormes, porque acolhidos e acolhedores são confrontados com a diferença, com o inimaginável. Desejo que a investigação sobre o AF seja um espaço de reflexão e um encontro com uma área da intervenção socioeducativa que desperte relações positivas com a vida, com a infância e com os laços familiares, com o desejo de aprender e a vontade de perguntar. Na certeza de que, se assim for, terá sido dado um contributo para uma intervenção pedagógica mais justa, mais generosa e mais humana.

Paulo Delgado


  
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Edição:

Edição N.º 195, série II
Inverno 2011

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