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O anti-eduquês em discurso normativo

EDUCAÇÃO

Eis que emerge triunfante o anti-eduquês, agora em discurso político legitimado e como referência normativa inscrita ao mais alto nível no Programa do XIX Governo. Trata-se de um facto inédito, pois nunca antes um programa governamental para a Educação assumira com tanta clareza uma tese pedagógica, ainda que apresentada como contra-pedagógica.

Em Maio de 2006, neste mesmo espaço, afirmava que o “eduquês” e o “anti-eduquês” me pareciam igualmente ideológicos e criticáveis, orientados mais para o convencimento do que para a compreensão crítica e a argumentação. Chamava ainda a atenção para o facto de o livro então publicado por Nuno Crato terminar com um ensaio de pedagogia normativa, enunciando o que “se deve adoptar em educação”, o que não deixava de fazer dele, com ou sem intenção, um pedagogo. Volvidos cinco anos e uma cruzada contra o eduquês “em discurso directo”, eis que emerge triunfante o anti-eduquês, agora em discurso político legitimado e como referência normativa inscrita ao mais alto nível no Programa do XIX Governo. Trata-se de um facto inédito, pois nunca antes um programa governamental para a Educação assumira com tanta clareza uma tese pedagógica, ainda que apresentada como contra-pedagógica face a uma orientação considerada dominante em termos políticos e burocráticos. O Ministério da Educação e um conjunto de pedagogos que, pretensamente, gravitavam em seu redor, foram desde sempre identificados como instâncias amplificadoras de ideias e conceitos nefastos. Veremos como e em que sentido irá mudar a orientação governamental, sobretudo quando o mais alto responsável político do ministério anunciava, ainda há pouco tempo, a urgência de destruir ou domesticar o monstro, como se este tivesse vida própria e absolutamente autónoma, enquanto entidade técnico-burocrática, aparentemente de feição antropomórfica. Em breve descobrirá que o ministério é também ele próprio e que, em rigor, não existe tal entidade em termos absolutamente homogéneos e reificados, mas antes grupos e subgrupos, tensões e conflitos no interior do centro, micro-políticas de alcance e influência variados. E ainda que, como dizia Jorge de Sena, “Nenhum monstro nunca é inteiramente um monstro”, sobretudo quando habitado por nós e pelos nossos, mais os novos intelectuais orgânicos que estarão a caminho.
É, porém, preciso dar tempo aos atores políticos e não perder a esperança, mesmo quando o pedagogismo do antieduquês, agora em discurso normativo, irrompe no programa do novo Governo, basicamente retornando aos mesmos tópicos constantes dos programas dos XV e XVI governos (PSD e CDS-PP), que quase ninguém lê. A Educação como área que “determina de forma indelével o nosso futuro colectivo”, a “qualificação dos alunos” e a valorização do “capital humano”, a centralidade do ensino profissional, a importância de garantir a “liberdade de escolha para as famílias”, a “generalização da avaliação nacional” com provas, testes e exames que, miraculosamente, melhorarão a educação. Os contratos de autonomia permanecem, desde 1998, tal como as promessas de descentralização, aparentemente limitadas, no caso dos municípios, à “delegação de competências”. A construção de uma rede nacional que compreenda a rede pública e o ensino particular e cooperativo retorna como projeto nuclear, de forma a combater o que de há muito vem sendo considerado como o “monopólio” da escola pública. E emerge a nova categoria de “ensino pré-escolar”, sem respaldo da Lei de Bases e sem qualquer esclarecimento conceptual. Livre escolha, mais testes e exames, bem como a crença, ingénua, de que a Educação tudo pode – eis uma conhecida forma de pedagogismo de raiz económica e gerencial que fez escola, há mais de 30 anos, entre outros países, nos EUA e na Inglaterra. Uma imensa literatura académica está disponível para quem queira, seriamente, estudar a questão, libertando-se de slogans e de ideias de senso comum. Começar pelo último livro de Diane Ravitch («The Death and Life of the Great American School System»), que ainda há poucos anos era entusiasticamente citada pelos adeptos das políticas de escolha e de testes, é certamente uma opção pedagógica. Ali se encontrarão algumas das críticas mais contundentes à ideologia do livre-mercado e à privatização na Educação, à testemania e ao elogio da performance competitiva entre escolas públicas, elementos que, segundo a autora, destruíram a educação na América e a afastaram dos sólidos valores educacionais que deveria promover. Em Portugal, porém, insiste-se na importação de velhas políticas, por vezes já abandonadas pelos seus autores e desconsiderando os respectivos contextos e resultados, aqui residindo o caráter ideológico dos novos programas, seja os do “eduquês” ou os do “anti-eduquês”, que também nisto são muito semelhantes.

Licínio C. Lima


  
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Edição:

Edição N.º 194, série II
Outono 2011

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