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ainda a República: o analfabetismo

Fechou-se recentemente o ciclo das comemorações do centenário da República, mas talvez venha ainda a propósito invocar alguma s questões em aberto entre a Educação e a República. E uma dessas questões é a do analfabetismo.

Como é geralmente sabido, a República fez da instrução e da educação popular uma das grandes bandeiras do seu ideário político, tanto antes como depois do derrube da Monarquia. Sirva de exemplo a essa prática a frase atribuída a Danton por António José de Almeida na revista «Ama Nacional», de Fevereiro de 1910: “Depois do pão, a educação é a primeira necessidade dum povo”. Convenhamos que havia todo o fundamento político e social para agir dessa forma, tanto em função da expressão quantitativa que o fenómeno havia alcançado ao longo do século XIX, quanto pela importância decisiva que o analfabetismo representava, negativamente, para o desenvolvimento económico e para a justiça social do país. Basta que nos lembremos do índice de analfabetos no virar do século XIX (74,6%) e que a escolaridade obrigatória tinha sido decretada em 1835, havia, portanto, 65 anos. E o fenómeno era tanto mais escandaloso quanto uma boa parte dos países europeus, sobretudo os que estavam mais expostos à influência do protestantismo, já se tinha libertado dessa chaga social na quase totalidade da sua população. Mesmo Espanha, Grécia e Itália deixavam Portugal bem na cauda da Europa neste domínio. Atento este contexto, a força do discurso republicano contra a Monarquia tinha toda a legitimidade. Todavia, não obstante toda essa legitimidade, em 1920 – isto é, 10 anos depois da implantação da República –, o analfabetismo ainda acusava a cifra de 66,2%, e de 61,8% em 1930. Significa isto que nos primeiros 30 anos do século XX, a taxa de analfabetos apenas regrediu 12,8%. E se considerarmos o ciclo de mais intensa actividade política do novo regime (1910-1920), a taxa de regressão correspondente não vai além de 4%. Face a tão míseros números, não podemos deixar de registar algum sentimento de impotência quanto ao seu real significado, embora não faltem explicações sobre os seus fundamentos, desde o ruralismo profundo em que vivia mergulhada uma grande parte da população até ao afrontamento político permanente em que a República se viu envolvida, a que não foi estranho o radicalismo ideológico que caracterizava o discurso dos corifeus republicanos, nem o caciquismo reaccionário tão impunemente exercido por quem beneficiava da protecção de um povo fortemente dependente de favores locais. Sabemos o modo como o Salazarismo administrou esta herança, que chegou ao 25 de Abril ainda “em bom estado de conservação”. Em 1970, a percentagem de analfabetos maiores de 15 anos era de 29%, enquanto Espanha registava 9,8 e a Grécia 15,6, conforme é possível ler em José Salvado Sampaio (Portugal: a Educação em números). Esta realidade persiste nos nossos dias, embora se exprima por outras formas, que já não as estatísticas. Por detrás do insucesso escolar que hoje todos lamentamos, da repetência e do abandono precoce, do desinteresse e da indisciplina que infesta os nossos recreios e as nossas aulas, projecta-se ainda o fantasma do analfabetismo da população, das famílias, também elas, já abandonantes precoces do processo escolar, dos pais e das mães que carregam consigo histórias pouco amáveis sobre a sua experiência escolar – o que, necessariamente, não constitui um bom contexto educativo, propício ao desenvolvimento de apetências escolares indispensáveis à formação de expectativas positivas face à mensagem escolar.
Sabemos que, segundo o censo de 2001, é ainda o 1º Ciclo a fase de escolaridade mais frequentada na geração dos 35/44 anos; para a geração dos 25/34, é o 2º Ciclo, seguido de perto pelo 3º. Significa isto que muitos estudantes actuais vivem num contexto familiar onde a cultura escolar não constituirá uma referência valorizadora das suas experiências pessoais.
Nestes termos, não será tanto o défice sócio-económico que explicará as dificuldades escolares, mas, sobretudo, o défice sócio-afectivo e cultural que impedirá o processo de aproximação e de identificação com a Escola, donde nasce o desejo de aprender que se transformará em projecto de ser.
Daqui ser legítimo concluir que entre o analfabetismo real e o analfabetismo diferido há um vínculo que as sucessivas gerações não desatam por si. Por isso se compreende melhor o apelo à revolução, quando há lugar para a utopia, como foi o caso da República.

Manuel Matos

 


  
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Edição:

Edição N.º 191, série II
Inverno 2010

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