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O humanismo concreto e a “questão do certo”

“Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. (...) Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas.”

[Vergílio Ferreira, «Aparição»]

Por que se deve fazer o que é certo? E, o que é o certo? Ao realçar estas indagações, Kant lançou-se na busca por um fundamento racional para as questões ético-morais. A formulação que ele apresenta como resposta não é nada desprezível: uma regra de conduta moral certa é aquela que, sendo adotada universalmente por todos, torna o mundo mais feliz.
Por outro lado, as religiões se encarregaram de criar preceitos morais de tal forma que a pergunta “por que se deve fazer o que é certo?” não precisava de resposta lustrada pela razão. Aliás, nem mesmo haveria sentido em fazê-la. Uma única resposta podia ser dada: para agradar, ou pelo menos não desagradar, os deuses. Afinal, desrespeitar preceitos religiosos significa, conforme essa compreensão, provocar a reacção divina – por via dos mais variados tipos de castigos – e a condenação na suposta vida do pós-morte.
Embora não seja de se desconsiderar a formulação kantiana, há que se reter, entretanto, por outra parte, que o ad infinitumda metafísica não permite apreender que os conceitos variam no tempo e no espaço. Como bem realçou Leôncio Basbaum, a “questão do certo” relaciona-se à temática do humanismo, que deve, no entanto, ser adjetivado como concreto. Isto é, diferente do humanismo transcendente e vulgarmente compassivo, o humanismo concreto concebe o ser humano situado em contextos vivos, em situações concretas, nas quais ele vive, convive e intervém como ente em busca de superação.
O humanismo concreto não se caracteriza apenas pelo reconhecimento do ser humano abstrato, genérico, mas é marcado pelo reconhecimento do ser total, dentro de uma determinada situação – historicamente variável – perante a qual ele se deve autonomizar.
Se as épocas e as situações são historicamente variáveis, a dimensão ético-moral – como esfera da indagação valorativa e de juízos normativos dessa valoração – deve ser concebida tendo o factor contextual como um dos seus pressupostos de conceptualização. Dentre outros aspectos, a moral configura-se como uma forma de autodefesa das sociedades, em sua luta contra os instintos do ser individual e as ações colectivas de mudança – sociologicamente, poder-se-á dizer, a moral consubstancia-se em factos sociais cuja transgressão requer um preço a ser pago.
A “questão do certo”, transcendendo o formalismo abstracto da metafísica, só ganha sentido se a sua inteligibilidade estiver conectada à efetivação do humanismo concreto – mesmo que, vá lá, admitamos, o humanismo concreto signifique o delineamento de um imperativo categórico, à maneira kantiana. Mas dois de seus postulados superam o universo da mera abstracção, quais sejam: o redescobrimento e a valorização antecedente do ser humano; e a sua autonomização e totalização.
Ou seja, o humanismo concreto assume como condição básica a necessidade de integrar o ser humano na posse de si mesmo e devolver-lhe a capacidade autónoma de escolha. Compreende que o ser humano, como ser social, é antes de tudo um complexode relacções, que não existe em si e por si, mas é o resultado de um processo histórico onde estão presentes relacções de poder, desigualdades, interesses em jogo, etc.
Do ponto de vista analítico, parece, portanto, insuficiente chancelar proclamações a-históricas como norma de conduta humana, do tipo “amai-vos uns aos outros”. Mais do que isto, importa ter presente imperativos de hominidade, das condições que produzem o ser humano e que o colocam em relacção no contexto em que ele está situado.
Os seres humanos não nascem bons nem maus. Esses são conceitos que adquiriram significação no decurso da história e que foram internalizados pela consciência social a partir da vivência das pessoas em seu habitat. As ideias que as pessoas têm de si resultam da sua cultura. Variam de acordo com o patamar civilizacional, aqui e acolá, segundo as especificidades do meio natural e social, bem como de acordo com as convicções correntes nos grupos em que as pessoas estão integradas e conforme as crenças que lhes foram inculcadas espiritualmente.
A efetivação do humanismo concreto é um incessante devir. Uma totalização dialética. Algo que não é estranho às afinidades eletivas de Goethe. Incursão moral e psicológica no jogo da atratividade e repulsa. Alegoria química pela qual os elementos se separam para se unirem. Crepúsculo da existência, opções nas fronteiras da ação. Síntese de impossibilidades. A “questão do certo” potencializa-se pela práxis do humanismo concreto. Sem recusar enfrentar a face inusitada da vida e a grande insônia do mundo.

Ivonaldo Neres Leite

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Brasil)


  
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Edição:

Edição N.º 188, série II
Primavera 2010

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