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O progresso reduzido a cinzas

Ou de como o editorialista se sente um tonto por lhe andarem 60 anos a ensinar a crer no progresso e agora lhe anunciam o aumento do horário de trabalho, as guerras, a peste e até a fome como coisas inevitáveis e naturais

Em 6 de Agosto de 1945, às 08H15 locais, o bombardeiro norte-americano Enola Gay lançou uma bomba de urânio, baptizada "Little Boy", sobre Hiroshima, reduzindo a cinzas instantaneamente mais de 25.000 pessoas. Dez mil metros mais ao Sul, as radiações alcançaram os 300.000 graus Célsius, dez vezes a luminosidade do Sol. Setenta e cinco horas depois, em 9 de Agosto, às 11H02 locais, uma bomba de plutónio foi lançada sobre Nagasaki. Um bairro popular ficou reduzido a cinzas. A lista de vítimas alcançava em 1998 118.555 nomes. Estas duas bombas atómicas matariam ao todo, ano após ano e após uma lenta agonia, cerca de 330.000 pessoas. A humanidade começava a viver assim com este terror visceral: "E se um louco pressionar o botão nuclear?", uma frase que inspiraria em 1964 o filme "Doctor Strangelove", de Stanley Kubrick.

HOUVE DUAS BOMBAS. Não houve duas mas apenas uma Guerra Mundial. O que se designa por 2ª Guerra Mundial não foi mais do que uma fase da guerra entre Estados que começou antes de 1914 e se prolongou, pelo menos, até aos anos cinquenta. Perante as guerras (Balcãs, Afeganistão, Iraque, etc.) que continuam a ser conduzidas pelos Estados-governo-do-mundo, perguntamo-nos se esta grande Guerra terminou com a violência desbragada de Hiroshima e Nagasaki ou se não é parte estruturante do Capitalismo Histórico. Se há uma ideia que caracteriza o Capitalismo Histórico, na sua fase mais moderna, e que é mesmo a sua pedra de toque, é a ideia de progresso. Uma ideia partilhada pelos defensores do Capitalismo Privado e pelos do Capitalismo de Estado. Se os liberais acreditam no progresso, com fervor os marxistas veneram-no com paixão. E, no entanto, basta olhar para o contínuo de violência, conduzida pelos gestores da «economia-mundo capitalista», para nos questionarmos sobre se, de facto, o progresso é uma realidade. Interrogação mais pertinente quando agora nos sugerem as novas saídas para a crise sempre interminável: mais degradação das condições de trabalho e de vida da população mundial, e fome. O progresso prometido pelo Capitalismo Histórico é real, é um facto, ou é uma mera aparência, um fantasma destinado a ocultar-nos a realidade? Nos últimos cinco milénios a humanidade desenvolveu grandes religiões. Une-as uma característica básica: todas tentaram dar resposta, e algum conforto, às misérias materiais da humanidade. Sintetizemos tais misérias no veredicto cristão dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse: a Guerra (entre Estados); a Guerra civil; a Fome; a Morte (derivada da peste e das doenças endémicas). A economia-mundo capitalista, quer na sua vertente de Capitalismo-Privado (simbolizado deste o final da Grande Guerra pelos EUA) quer na sua vertente de Capitalismo-de-Estado (simbolizado primeiro pela ex-URSS e agora pela China), dando seguimento à ideologia fundadora do Capitalismo Histórico, nascido a partir do século XVI, de que faz parte a ideia estruturante de progresso, prometeu aos povos, em nome também do racionalismo, da ciência e cada vez mais da tecnocracia, resolver as miséria materiais do mundo. Também neste ponto, a promessa do Capitalismo Histórico se confunde com a promessa das grandes religiões. E não será ele mesmo uma outra grande religião? Por razões de espaço, resumo aqui interrogações que me trouxeram a este tema: a economia-mundo capitalista (agora rebaptizada de globalização) foi e é promotora de progresso? O que aconteceu, entretanto, aos Quatro Cavaleiros do Apocalipse?

A GUERRA. As guerras, entre Estados ou entre povos, parece terem sido uma constante histórica. A Guerra não é um fenómeno peculiar do sistema-mundomoderno. Mas este nada resolveu. Os desenvolvimentos tecnológicos trouxeram-nos o bem e o mal. Uma Guerra hoje mata mais num dia do que antigas guerras em 30 anos. E os terrorismos? E a sacrossanta aliança economiaguerra? Progresso? Onde? AS GUERRAS CIVIS. Têm diminuído? São hoje os povos mais pacíficos no interior das suas fronteiras? Como vamos de violência entre classes, grupos sociais e étnicos? E as novas formas de exploração de quase todos por uns poucos? Progresso? Não. A economia-mundo capitalista acentuou a conflitualidade e a violência e sustenta-se na competição selvagem e nas novas formas de Guerra civil.

A FOME. É hoje menos ameaçadora do que no passado? O Banco Mundial (BM) acaba de anunciar o risco de fome generalizada como natural e inevitável! As alterações climáticas de curto prazo, a fraqueza dos transportes, o fraco conhecimento sobre armazenamento de reservas alimentares de longo prazo faziam com que, na era pré-moderna, qualquer quebra da produção alimentar local se traduzisse em fome. Hoje, os avanços tecnológicos podem colocar o mundo ao abrigo das pragas e dos caprichos imprevisíveis do clima. Mas os mesmos avanços tecnológicos alteram as condições naturais da biosfera. A produção de transgénicos e de biocombustíveis são uma ameaça ao direito à alimentação. O sistema de circulação de alimentos é manipulado pelos terroristas que estabelecem as «leis do Mercado». A fome continua a ser uma realidade que se abate sobre milhões de pessoas. Os 50 a 80 por cento da população mundial que estão no fundo da escala dos direitos humanos continuam a sofrer de má nutrição e mesmo de fome. O futuro é ameaçador.

A MORTE. Conseguiu o Capitalismo Histórico postergar a morte por peste ou doenças endémicas? Podemos creditar à civilização capitalista um registo tendencialmente positivo (ainda que classista, racista e geograficamente desequilibrado) na luta contra a doença. A necessidade de higienizar os 15 a 20 por cento de privilegiados fez melhorar a saúde pública nos países industrializados. Sabemos mais sobre saúde e higiene. Ainda assim, o resultado a nível mundial é desolador. Já não temos a peste negra do séc. XIV, mas temos, por exemplo, a SIDA. Doenças como a malária e outras de fácil remédio continuam a dizimar milhões e milhões de pessoas. Há contas negras a creditar à economia-mundo. Historicamente, em virtude das trocas transoceânicas de doenças, o capitalismo-mundo levou à quase extinção os indígenas das Américas e muitos da Oceânia, da África e mesmo da Ásia, sobretudo entre 1500 e 1700. Nos Estados industrializados diminuiu a mortalidade infantil e prolongou-se a vida para lá dos 60 anos. Mas no resto do mundo, onde vive a maior parte da população, a situação não é melhor agora do que há 500 anos. Os avanços tecnológicos colocaramnos no limiar do provável surgimento de novas e dramáticas pragas e pestes de um tipo diferente das antigas.

O PROGRESSO. Conseguiu a civilização capitalista derrotar ao menos os Quatro Cavaleiros do Apocalipse? Do ponto de vista quantitativo, responderemos que apenas o fez de forma muito mitigada e muito, muito desigual. Uma visão qualitativa e desapaixonada leva-nos a dizer que a qualidade de vida não é hoje, globalmente, muito melhor do que o era na pré-modernidade. As propostas auto-proclamadas de socialistas surgidas a partir do século XIX, não fizeram melhor e não se afirmaram como alternativas. Elas partilharam as mesmas ilusões de progresso, racionalidade iluminista, competição, exploração, autoritarismo e violência [recordese a ex-URSS e observe-se o Capitalismo-de-Estado chinês]. Pôr em causa, criticamente, a nossa cega crença no progresso pode ajudarnos a reinventar alternativas de vida? Talvez, quem sabe?!

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 180
Ano 17, Julho 2008

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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