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Planeta do Futebol: Um livro actual!

Quando há 40 anos comecei a estudar a História da Educação Física, entrei de folhear, curioso, o Tratado de Educação Física de Celestino Marques Pereira, um livro sobre o qual tombou um silêncio tumular, mas que merece ser consultado porque, pela primeira vez em Portugal, sobre este assunto lato da motricidade humana, se publicou um livro sério, meticulosamente fundamentado, de carácter histórico-filosófico. Mas é um livro que parece parado na eternidade: tem a idade de 50 anos!
O livro Planeta do Futebol, de Luís Freitas Lobo, que vem de ser editado, é o livro de um homem culto, jovem ainda, que tentou aplicar, sem o dizer, o conceito de paradigma (T. S. Kuhn) ao estudo do futebol. E aqui encontrei um companheiro de jornada! De futebol, lato sensu, muito aprendi, em Portugal, com José Maria Pedroto (e os seus adjuntos João Mota e José Neto), Mário Wilson, José Mourinho, Manuel Jesualdo Ferreira, José Gomes, professor Neca, Manuel Cajuda, David Monge da Silva, Jorge Jesus (e nas conversas fraternas que mantive, anos a fio, com o Homero Serpa); no Brasil, com Telé Santana, Mário Sérgio e João Paulo Medina.
Em Luís Freitas Lobo, há algo mais do que futebol, ou melhor, há o futebol mais o campo do sentido que o futebol tem, mais a vontade de uma nítida demarcação entre um futebol físico tão-só e um futebol donde emerge a complexidade do humano. Folheia-se, demoradamente, o livro Planeta do Futebol e dele ressalta um paradigma, o das ciências hermenêutico-humanas! No futebol de Luís Freitas Lobo o que nos arrebata, o que nos prende é o facto de os seus jogadores serem homens, antes de serem jogadores de futebol e, daí, a sua humanidade informar a própria motricidade do praticante.
Luís Freitas Lobo não deixa dúvidas, quando escreve: "Ao longo dos tempos, o futebol mudou muito, adquiriu novas formas tácticas e estilos, mas em todas as épocas a inteligência foi o ponto de partida para entender o seu sentido colectivo ao qual até as grandes individualidades se devem submeter" (p. 35). Mais adiante, pode ler-se: "Na actualidade, existem poucos jogadores, com nível para recriar o chamado perfume de outras eras, onde a bola era tratada com carinho, viajava de pé para pé pela leveza dos magos que a tocavam e quase pedia música celestial para acompanhar todos os seus movimentos. Hoje, quando surge um poeta da bola a recriar esses gestos, muitos estudiosos pragmáticos logo o catalogam de lento. Ilusão de óptica. Pensem em Zidane, Kaká ou Baggio. Nunca denotam nervos ou pressa em campo. A aparente lentidão apenas esconde a inteligência capaz de devolver à vida a bola ou a jogada mais moribunda. Para eles, a bola é um prolongamento do seu corpo" (pp. 26/27). Mas, porque não há corpo sem a complexidade humana, da própria bola ressalta o génio do jogador que a comanda. No futebol, como em todo o desporto, o humano é o paradigma: é o que Luís Freitas Lobo, antes do mais, nos diz neste livro que, francamente, me seduziu. Recordo Foucault: "A história contínua é o correlato indispensável da função fundadora do sujeito, a garantia de que tudo o que lhe escapou lhe poderá ser restituído (...). Donde, a palavra de ordem é salvar, contra todos os descentramentos, a soberania do sujeito" (L'archéologie du savoir, Gallimard, Paris, 1969, p. 22). Luís Freitas Lobo diz o mesmo doutra forma: "O que faz do futebol uma linguagem universal é a expressão corporal dos seus intérpretes (...). O maior elogio que vi fazerem a Cruyff foi quando o definiram o Nureyev do futebol" (p. 30). De facto, o futebol é um sistema de relações... entre tudo o que o praticante é, incluindo a dimensão axiológica, isto é, ética e estética!
Por vezes, os homens do futebol estranham que estudiosos, sem passado no futebol profissional, digam coisas sobre esta modalidade que eles não sabem dizer e, mais, que reflectem indubitavelmente a realidade. É que os homens do futebol têm imperiosa necessidade de dialogar com outras áreas do conhecimento. E porquê? Porque o conhecimento teórico aumenta o espaço dos factos! Quanto mais forem as ópticas a observarem o futebol, mais o futebol se enriquece e se complexifica. O que existe de indizível, na linguagem habitual do futebol, é o que é fundamental. A revalorização do teórico não significa o desprezo da prática, mas a abertura da prática a novas pesquisas e a novos valores. Por que surgiu o futebol total, na década de setenta? Na década de 70, nasce o paradigma da complexidade e é posto em causa o reducionismo do dualismo antropológico cartesiano. Também não foi por inspiração divina que eu, modestíssimo filósofo, escrevi um artigo, na revista Ludens (Outubro-Dezembro de 1979), intitulado "Prolegómenos a uma nova ciência do homem", onde me ocupei do desporto como sub-especialidade de uma nova ciência humana. Nascia o conceito de complexidade e a competição e o treino desportivos haviam de repensar-se. A partir dessa altura, ou melhor, de há quarenta anos a esta parte, uma vontade de ciência atravessa o futebol. Mas não se trata de uma ciência sem sujeito: não se trata de um saber só laboratorial, ou só mensurável, ou de só de alta tecnologia... porque o ser humano não é só isto! E mesmo que alguns cientistas tentem provar que o livro de Luís Freitas Lobo não tem valor científico, tem certamente valor cognitivo. Com efeito, não há nele um conhecimento exacto, mas há um saber necessário. 
Planeta do Futebol é um livro indispensável e Luís Freitas Lobo um grande e notável pensador do futebol ? como não encontro hoje igual, no nosso País!

Manuel Sérgio


  
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Edição:

N.º 180
Ano 17, Julho 2008

Autoria:

Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa
Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa

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