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Levantem-se e marchem...

Ficará certamente para a história do desporto nacional a proclamação do chefe da missão portuguesa aos Jogos de Beijing (2008) à TSF: "Nós somos desportistas, cumprimos a Carta Olímpica e deixamos a política para os políticos" (TSFonline, 2/4/08). Proclamações deste tipo, que procuram fazer crer que o desporto nada tem a ver com a política, caracterizam uma certa menoridade que, na tradição corporativa do desporto, os dirigentes sempre atribuíram aos atletas, permitindo-se falar em nome deles. Ora, a história há muito que ensinou que todo o desporto organizado caminha tendencialmente para um modelo totalitário, como se constata pela longevidade do dirigismo desportivo por esse mundo fora.
Na realidade, quando o desporto nada tem a ver com a política, numa expressão de Manuel Sérgio, os atletas são pura e simplesmente transformados em "bestas esplêndidas" e os espectadores em alienados sociais. Assim, a afirmação do chefe de missão significa tão só outra forma de fazer política com o desporto. Desta feita, uma de bem menor categoria.
Quando em 2001 o Comité Olímpico Internacional (COI) escolheu Beijing como sede dos Jogos Olímpicos (JO) de 2008, tomou uma decisão de alto risco, porque de consequências imprevisíveis. Ao tempo, o Parlamento Europeu chegou a alertar o COI para a necessidade de estabelecer normas relativas aos direitos humanos, a cumprir pelos países candidatos a acolherem os JO.
Entretanto, o mundo viveu mais ou menos adormecido até ao início da Olimpíada de Beijing, quando aconteceram várias manifestações em Lhasa capital do Tibete. Depois, o percurso da Tocha Olímpica, cuja chama foi acesa a 24 de Março em Olímpia debaixo de protestos, tornou-se um calvário não só para as autoridades chinesas como para Jacques Rogge presidente do COI. A situação atingiu tais proporções em Londres e em Paris, que Rogge a fim de deitar alguma "água na fervura", teve de solicitar às autoridades chinesas que cumprissem o assumido em 2001, quanto ao respeito pelos Direitos Humanos no país. E disse: "Pedimos claramente à China que respeite esse compromisso moral". O tiro saiu pela culatra. A reacção da China não se fez esperar. Jiang Yu, a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês ripostou: "esperamos que os membros do COI continuem a respeitar os estatutos olímpicos. A perturbação e a sabotagem do percurso da chama são contra o espírito da Carta Olímpica, as leis internacionais e os habitantes de todo o mundo que defendem a paz."
Curiosa a posição da RPC sobretudo se considerarmos que, desde a sua fundação em 1 de Outubro de 1949, os dirigentes chineses sempre utilizaram o desporto para resolver questões políticas. Agora, continuam a fazê-lo de uma forma bem empenhada, mas debaixo de uma desconfiança crescente, na medida em que ninguém sabe se o estão a fazer com bons ou maus propósitos.
Na realidade, o cuidado com que as autoridades da RPC encaram a questão política dos JO, começa nos equipamentos que os atletas vão utilizar nos JO, e, numa lógica de integração vertical de um conjunto de valores políticos, acaba numa visão comercial à escala do planeta. Os equipamentos foram inspirados nos célebres guerreiros de Terracotta. Procuram transmitir os sentimentos de patriotismo e sacrifício que o lendário imperador Qin Shi Huangdi promoveu para a unificação da China. Os atletas afirmam que quando vestem os equipamentos se sentem na pele de "super-heróis", na medida em que: incorporam o espírito guerreiro de Terracotta; sentem um enorme orgulho em pertencerem à equipa nacional; usufruem do supremo sentimento de servirem o país. Para que tudo isto possa ser explorado ao máximo, o vermelho dos equipamentos foi testado sob os efeitos da iluminação das transmissões televisivas no próprio Estádio Olímpico, a fim de ser conseguida a cor desejada. Mas, o segredo dos segredos que procura atingir o íntimo de cada atleta é que no interior dos equipamentos, num local onde ninguém a não ser o próprio pode ver, estão escritas duas palavras do Hino Nacional da RPC: "levantem-se" e "marchem". Quer dizer, perante o desafio que são os JO, a RPC prepara-se para os vencer porque, actualmente, as vitórias desportivas fazem parte da sua afirmação política e económica no mundo. Contudo, nem sempre a lógica da RPC, no que diz respeito ao instrumento político que é o desporto, funcionou neste sentido.
Em 1958 a RPC, devido ao chamado "problema das duas Chinas" abandonou o COI e as principais Federações Internacionais. A fim de não se deixar isolar, promoveu a institucionalização dos Jogos das "Novas Potências em Vias de Desenvolvimento" ? África, Ásia e América Latina. O problema é que a RPC era muito superior aos seus adversários. Então, por determinação directa do Primeiro-ministro Zhou Enlai, os atletas foram obrigados a perder os jogos e as respectivas medalhas de ouro, em nome das boas relações que deviam existir entre os países participantes. Por exemplo, em 1963, o atleta chinês foi obrigado a abdicar da medalha de ouro em badmington, a fim da mesma poder ser ganha pelo país anfitrião, a Indonésia. Claro que as autoridades indonésias agradeceram. 

Hoje, a RPC voltou à linha dura da competição desportiva de Mao Zedong, expressa no livro "Um Estudo de Educação Física", aonde o grande líder chinês escreveu: "A educação física não só harmoniza as emoções como também fortalece a vontade. (?) O principal desígnio da educação física é o heroísmo militar." E como a guerra nos tempos que correm é, acima de tudo, económica, a RPC assumiu decididamente o pensamento do antigo primeiro-ministro Deng Xiaoping quando deu o sinal de partida, quer dizer, o mote, para o combate económico que se avizinhava: "ser rico é glorioso".
O mundo Ocidental já começou certamente a aperceber que, muito provavelmente, estamos numa segunda "Grande Marcha", a do século XXI, desta feita económica que não se confina às fronteiras da China. Uma "Grande Marcha" que foi "desenterrar" os guerreiros de Terracotta para que, através dos atletas olímpicos, ordenem ao país que se levante e marche.
Por isso, quando ouvimos o chefe da missão portuguesa aos Jogos de Beijing afirmar que "nós somos desportistas, ?blá, blá, blá?", o que só revela o atraso cultural em que o dirigismo desportivo nacional se encontra, temos de perguntar o que é que os sucessivos governos deste país têm andado a fazer em matéria de políticas públicas. Até porque, só para o Projecto de Beijing, os contribuintes já pagaram, pelo menos, 14 milhões de euros. Ora, 14 milhões é muito dinheiro só para alguns senhores andarem a passear à conta do erário público, convencidos que o desporto nada tem a ver com a política, mesmo que uns tantos atletas ganhem umas medalhas que, depois, bem vistas as coisas, só servem para lhes beneficiar o currículo, sem que o país ganhe nada com isso. E quando assim acontece, os atletas são os primeiros prejudicados.

Gustavo Pires


  
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Edição:

N.º 180
Ano 17, Julho 2008

Autoria:

Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa
Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa

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