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Usar a arte para mostrar o que é belo, mas também o que é feio e que não precisa de o ser

ARTE E MEIO AMBIENTE

Sou, muito ligada à natureza, à mata, às montanhas, mas, sobretudo, ao mar, que está logo ali, ao alcance dos meus olhos, que vejo e sinto todos os dias do ano desde que nasci.

Lyla Melo é aluna do Curso de Pedagogia da Universidade Federal Fluminense, em Angra dos Reis, mas foi como a artista plástica que ela é, nascida e criada em Angra dos Reis, cidade litorânea ao sul do Estado do Rio de Janeiro, Brasil, que fiz esta entrevista. Ela é autodicta e as suas pinturas têm como principal tema o mar e os seus habitantes. As suas preocupações giram em torno da degradação ambiental e procura, sempre, desenvolver projetos pedagógicos que unam arte e meio ambiente.

Lyla, para começar, quem é você?

Essa é uma pergunta difícil de responder. Mas eu defino-me como alguém nascida, criada e que vive em Angra dos Reis, no sul do Estado do Rio de Janeiro, no Brasil. Isto significa que sou uma pessoa que vive as delícias e as dificuldades de ser habitante de uma cidade litorânea, entenda-se turística, de um país tropical do Terceiro Mundo. Sou, portanto, muito ligada à natureza, à mata, às montanhas, mas, sobretudo, ao mar, que está logo ali, ao alcance dos meus olhos, que vejo e sinto todos os dias do ano desde que nasci. Sou também uma artista plástica que, apesar de todas as dificuldades, vive da produção do seu trabalho criativo e que batalha muito para dividir com o maior número de pessoas possível aquilo que a minha sensibilidade percebe do mundo que me rodeia. Melhor dizendo, procuro mostrar, com a minha arte, as coisas que vejo e sinto, as belas, mas também as feias que acho que não precisam de ser, as justas e as injustas que eu gostaria de modificar.

Como se deu a sua escolarização?

Eu estudei sempre na escola pública. Não gostava muito da escola, não entendia porque tinha que acordar cedo e ficar tanto tempo fora de casa. Achava que era bom aprender a ler e a escrever, mas achava as actividades que as professoras propunham muito maçadoras. Era impaciente e o tempo custava a passar. Isso foi no curso primário, isto é, da classe de alfabetização até a quarta série. A partir da quinta até a oitava, eu gostava ainda menos, porque tinha que estudar um monte de matérias que não me interessavam e as aulas pareciam-me ainda mais maçadoras. Porém, já compreendia que era importante ir à escola para não ficar para trás, para compreender melhor as coisas do mundo. Depois, fiz o Curso Técnico de Contabilidade. (risos). É, não tem nada a ver comigo! Fiz este curso porque, primeiro era o que havia, além do pedagógico, e eu não queria ser professora. E em segundo lugar, porque queria profissionalizar-me para começar logo a trabalhar, ganhar algum dinheiro que me permitisse fazer o que realmente gostava, que era pintar. Não quis fazer a faculdade, pois, na época em que eu terminei o curso técnico, não queria sair de Angra e nem tinha condição financeira para isso. A faculdade que o meu pai me ajudaria a fazer era de Contabilidade, já que tinha feito o técnico nesta área, portanto, essa seria a escolha que deveria fazer, segundo ele. Mas eu recusei seguir a lógica do meu pai. Além disso, as opções de faculdade que eu tinha, mais próximas de casa, eram em Barra Mansa ou em Campo Grande, ambas particulares o que significava uma deslocação de três a quatro horas de ida e volta. E eu não suportava a ideia de ter que viajar todos os dias para estudar algo que não me interessava. Em Angra ainda não havia nenhuma faculdade. Foi só muito tempo depois, quando já havia o Curso de Pedagogia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e que algumas pessoas que eu conhecia já haviam cursado ou estavam a cursar é que me animei a prestar o vestibular. Isto significa que eu já estava suficientemente amadurecida para compreender que a faculdade não me daria só uma nova profissão, mas permitir-me-ia ampliar os meus horizontes, as minhas reflexões e compreensão teórica do mundo. E isso, com certeza, está a trazer benefícios para meu trabalho artístico. Continuo a não querer ser professora e sem paciência para ficar a repetir sempre a mesma coisa, mas o Curso de Pedagogia da UFF, em Angra, é muito boml. Permite uma troca de saberes muito boa entre professores e alunos e é bem criativo. Podemos usar a nossa imaginação, inventar e reinventar aulas e actividades extra-sala de aula. Existe, por exemplo, a componente curricular chamada Actividades Culturais, no qual fazemos visitas, viagens, assistimos a palestras, a peças de teatro, a filmes e que nós alunos organizamos em conjunto com os professores e que satisfazem os nossos interesses e curiosidades. Mas onde também temos a oportunidade de mostrar os nossos talentos. Aliás, foi numa Actividade Cultural que estive pela primeira vez na faculdade. Ainda não era aluna, mas fui convidada por uma das suas formandas para expor alguns dos meus trabalhos. Naquela semana cultural, a proposta era a de mostrar a produção artística angrense. E fui chamada. Aliás, foi quando nos conhecemos, lembra-se? Você foi-me fazer o convite lá no escritório que divido com a minha irmã.

Claro que me lembro! Mas, nem por um minuto, imaginei que você viria a ser aluna no curso e minha formanda.

Pois é, agora já estou no nono período, portanto, faltam apenas quatro para terminar o curso, ou seja, no meio do ano que vem (2007), a minha turma estará a formar-se. Passou tão rápido...

E quanto ao trabalho: você sempre trabalhou com Arte?

Nunca! Terminei o ensino técnico a estudar à noite, pois, desde os meus quinze para os dezasseis anos, que já trabalhava. O meu primeiro emprego foi numa escolinha maternal, que se chamava Quintal, onde ganhava meio salário mínimo e era ajudante da professora. Depois, mudei diversas vezes de emprego. Trabalhei em bancos; supermercados, a fazer cartazes de preços; trabalhei na Crediverb, uma agência de crédito do Estaleiro Verolme; fui garçonete nos fins de semana. A minha carteira de trabalho é uma confusão, porque não conseguia ficar muito tempo no mesmo emprego. Durante algum tempo, trabalhei, concomitantemente, em alguma coisa que me rendesse algum dinheiro e a fazer Arte. Isto é, enquanto foi possível conciliar. Até que não era possível. Houve uma altura em que eu estava a trabalhar numa escola particular, a dar aulas de educação artística e, num desses feriados prolongados, no meio do ano, fui com a minha irmã visitar uma amiga em Porto Seguro, no litoral do Estado da Bahia. Ao passear num shopping de lá, descobri que havia uma área reservada para exposições de arte. Não perdi tempo, apresentei o meu trabalho ? sempre que viajo, levo na bagagem um currículo com fotos dos meus quadros ? e agendei uma exposição, pois, na agenda deles, havia uma vaga devido à desistência de um artista. Teria três meses para montar a minha exposição, só que o período marcado não coincidia com as férias escolares. Mas, assim mesmo, aceitei e reservei o espaço para expor o meu trabalho. De volta a Angra, continuei a dar as minhas aulas e comecei a trabalhar na exposição, contando com a possibilidade de conseguir uma licença na escola por ocasião da organização da exposição. Quando estava próximo da data que eu teria de viajar, pedi à directora da escola uma licença por sete dias. O meu pedido foi negado e não houve negociação. Resumindo, pedi a demissão e fui para Porto Seguro e, ao contrário de uma semana, fiquei um mês. Não me arrependo nem um pouquinho. Foi uma vivência muito boa, vivi em um mês experiências fantásticas, conheci pessoas incríveis e coleccionei muitas histórias para contar. Essa aventura daria um capítulo de um livro.

Lyla, mas quando é que você percebeu que possuía habilidades artísticas?

Quando ainda era criança. Desenhava qualquer coisa que achasse interessante. Como não era uma criança comunicativa, tinha dificuldades em me relacionar, aborrecia-me com facilidade. Na escola, então, quando tinha oportunidade, fugia saltando o muro. Naquela época, usava o desenho para fugir deste mundo, ia para outro imaginativo, um universo que não fosse a minha realidade. Hoje, superada a minha dificuldade de comunicação, uso os meus desenhos, as minhas pinturas para me aproximar mais do mundo, do universo, como percebo a realidade, que agora sei que não é só minha, é também de muito mais gente.

E como se deu a sua formação artística?

Aos dezassete anos, comecei a fazer alguns cursos de desenho pelo SENAC. Pela manhã, trabalhava na escolinha Quintal, à tarde, fazia as aulas de técnicas de desenho e pintura e, à noite, cursava o ensino médio e técnico de contabilidade. Mas foi só em 1988 que comecei a participar de algumas exposições colectivas, com outros artistas que já eram conhecidos na cidade, como Paulo de Lira, que foi um dos meus professores no SENAC, Sueli Messias, Narciso Gonçalo, Ivo dos Remédios, entre outros. Fui, assim, aprendendo com a experiência, ensaiando, errando e acertando. Às vezes, o resultado não me agradava, e então começava tudo de novo. Para isso, tinha (tenho) muita paciência, porque sinto um prazer enorme em fazer experiências e descobrir novas maneiras de expressão. Fui também adquirindo livros sobre artes e, assim, em parte orientada pelas experiências dos mais antigos, em parte por conta própria, fui-me informando e formando para me tornar uma artista plástica. Mas acho sempre que ainda tenho muito para aprender e não me considero uma artista plástica "pronta e acabada".

Fale um pouco da sua pintura, dos seus temas e das suas técnicas.

Comecei o meu trabalho de pintura retratando as belezas naturais de Angra dos Reis, o que me dava um enorme prazer. Como já disse, nasci e cresci e morava de frente para o mar, de costas para a Mata Atlântica e sofri a influência de artistas que retratavam as belezas naturais da cidade, mas, também pintei marinas, barcos, casario e até retratos. Porém, com o tempo, senti necessidade de buscar um caminho próprio e outras técnicas para expressar a minha arte de uma forma mais criativa e original, pois já não estava muito satisfeita com os trabalhos que estava a realizar. Essa inquietação levou-me a pesquisar diversos materiais, nos quais pudesse acrescentar à pintura ? fazer colagens, misturar gesso, cola, tinta, papel.

Foi assim que você chegou ao PET?

Claro, foi numa das minhas idas até a Vila do Abraão, na Ilha Grande, que surgiu a ideia de utilizar o PET das garrafas de refrigerantes para fazer colagens nos quadros.

Mas como foi isso? O que é que a Ilha Grande tem a ver com o PET?

Foi assim. Eu navegava lentamente numa traineira, contemplando a paisagem como se fosse a primeira vez. Aliás, não deixo de me surpreender com a diversidade de cores do mar e da mata! Sinto sempre esta sensação de primeira vez. Porém, em dado momento, notei que, de vez em quando, boiava uma garrafa de refrigerante, e foram várias até a chegada à vila.
Fiquei a imaginar a baía da Ilha Grande como um mar de garrafas PET. Entrei em pânico! Já havia lido, em alguma revista, que esse tipo de material levava mais de cem anos para se decompor. Fiquei muito angustiada. Vi-me a navegar num mar de garrafas de plástico, num mar de lixo. Indignada, pensei que precisava de fazer alguma coisa. Foi então que me veio à ideia pesquisar esse material. O PET, que é a sigla de politeraftalato de etileno, é um derivado do petróleo que é usado, principalmente, no fabrico de frascos de refrigerantes. Ao trabalhar com ele, percebi que tem como características o brilho, transparência e alta resistência, mas que era um material de fácil manipulação, porque é flexível e bastava aquecê-lo com a chama de uma vela para poder dar-lhe movimento e forma. Comecei a desenhar peixes, tartarugas, golfinhos, estrelas do mar e, nas sobras dos cortes, fui descobrindo formas abstractas que lembravam as algas marinhas como eu as via no fundo do mar quando mergulhava. Pesquisei, então, diversas colas, gesso e massa acrílica com os quais pudesse prender as figuras de PET nas telas já pintadas com o fundo do mar. Foram quase dois anos a pesquisar materiais, quando decidi fazer uma exposição para mostrar o resultado. Decidi apresentar ao público o trabalho produzido naquele período, apesar de não estar muito segura. Afinal, estava a utilizar lixo para compor os meus trabalhos.

Quando e onde foi essa exposição? Qual foi a reacção do público?

Essa primeira exposição realizou-se na Casa de Cultura de Angra, em Dezembro de 1996. Para minha surpresa, os trabalhos foram bem aceitos pelo público, mas não pelos meus colegas artistas. Criticaram-me muito. Ouvi críticas bem duras. Mas o que me deixou satisfeita e me fez continuar por esse caminho foram as expressões de surpresa e admiração que as pessoas faziam quando descobriam que aquele material que eu utilizara nas colagens era, simplesmente, pedaços de garrafas de refrigerante pintadas e que davam ao quadro um movimento diferente e uma perspectiva tridimensional.

E você não fez outras exposições?

Fiz. No ano seguinte, recebi convites para expor em São Paulo e depois sucedeu-se a exposição em Porto Seguro. Foi a partir daí que comecei a viajar com as exposições. Em 1998, participei de uma exposição colectiva na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e, em 2000, fiz uma individual na Casa da Gávea, também no Rio. Também tenho exposto em vários lugares de Angra, como no Espaço Eletronuclear, no Centro Cultural Theofilo Massad , no Espaço Cultural Unimed, no Hotel Porto Galo, no Colégio Naval, no Blue Three Park .

Quais são as suas intenções ao usar o PET?
Como o faz?

A minha proposta é mostrar, nas exposições, que o lugar do lixo não é o mar. Quando era criança e até há bem pouco tempo, comprava refrigerante envasado em garrafa de vidro e, quando comprava de novo, trocava uma garrafa vazia, que valia por um depósito em dinheiro, por outra cheia. Como era de vidro, portanto, reaproveitável, não ia para o lixo. Agora, como vivemos na era do descartável, as embalagens tendem a ser também descartáveis, criando o grande problema do aumento do volume do lixo, e as garrafas PET, como estão na categoria dos descartáveis, não têm valor de troca, são deitadas fora. E são toneladas e toneladas de garrafas de refrigerantes que acabam no mar, nos rios, nas praias, nas calçadas, em suma, no meio ambiente, poluindo, sujando e não se degradando facilmente. Hoje, já existem várias iniciativas para o aproveitamento deste material, desde vassouras, bolsas, que são simplesmente transformações relativamente simples da garrafa ? corte, recorte e modelagem ? até tecidos, que exigem um tratamento industrial. Com o PET são feitos até móveis. Como o mar é minha fonte de inspiração, torço e retorço o plástico aquecido, dando-lhe o movimento das figuras marinhas e de diversas formas abstractas. Como já lhe disse, também tive necessidade de pesquisar diferentes tipos de cola, de massa, como gesso acrílico, papier, massa acrílica, entre outros, para que o plástico aderisse à tela, que tanto podia ser de tecidos como em painéis de eucatex. No início do trabalho, utilizei tinta a óleo para a pintura do fundo da tela e no PET, tinta esmalte sintético, com brilho ou fosco.
Como é meu hábito, não fazia uso de croquis de desenho. Desenhava e pensava nas cores directamente para as telas. Por isso, muitas vezes imaginava um trabalho e saía outro completamente diferente. Mas isso não significava que eu perdia a tela. Pelo contrário, o resultado era satisfatório porque conseguia dar ao observador a impressão de estar no fundo do mar e a tridimensionalidade das figuras marinhas que eu representava.

Mas você também começou a usar o PET para fazer enfeites e bijuterias. Como é que você chegou a esse trabalho?

Com o passar do tempo, comecei a perceber que os pequenos peixes que eu colava nos quadros também poderiam transformar-se em bijuterias. Comecei, então, a criar brincos, colares, prendedores de cabelo, de canga, viseiras e porta-retratos. Com estes objectos, comecei a participar em feiras de artesanato e, sempre que viajava com as exposições, levava as bijuterias e vendia-as para algumas pessoas e, até mesmo, em lojas que se interessassem. São fáceis e rápidas de fazer e, em geral, as pessoas gostam muito. Além do que são leves e baratas.

A partir do PET, você desenvolveu também um projecto educacional. Como foi esta experiência?

Desenvolvi o meu primeiro projecto educacional ? sim, porque ainda pretendo realizar muitos outros ? direccionado para professores, alunos e comunidades de baixa renda, que consistia em oficinas a que dei o nome de "Arte de Reciclar". Na época das oficinas, eu entendia como fazê-las, mas foi só depois que descobri o significado da palavra reciclagem. Hoje, entendo que reciclagem implica um processo industrial e que requer transformações industriais do material a ser reciclado. O que realmente faço é um reaproveitamento do PET, utilizando apenas o calor para deformá-lo. Os objectivos dessas oficinas eram de desenvolver o olhar das pessoas para ver que em tudo pode existir arte, inclusive nas coisas mais simples. Mostrar que a arte não é algo distante da vida de ninguém e de que todos são capazes de desenvolver alguma actividade artística, não necessariamente ser um artista, mas desenvolver a sensibilidade. O importante não é tanto o produto final do trabalho, é mais educar o olhar para isso. Penso que o ideal seria não existir garrafa PET, mas já que existe é preciso dar-lhe um fim mais útil. Além do despertar das pessoas para o desenvolvimento de uma actividade artística, as oficinas também visaram possibilitar a geração de renda e, sobretudo, reflectir sobre a importância da preservação da natureza. De início, quando comecei a pesquisar o material, não imaginava que acabaria por tomar esse rumo, criando um projecto pedagógico ambiental. Apenas tinha uma mera inquietação pessoal que surgiu, quando passeava, a caminho da Ilha Grande. Na verdade, eu reeduquei-me neste processo de pesquisar e transmitir o resultado da minha pesquisa. Hoje, tenho uma consciência muito mais desenvolvida acerca do meio ambiente e dos seus problemas. Entendo que utilizamos e desprezamos uma diversidade absurda de produtos totalmente dispensáveis para a nossa sobrevivência. O consumismo transforma-nos cada vez mais em escravos das coisas supérfluas que inventamos e predadores da natureza.

A cidade, para crescer, tem destruído as matas, aterrado manguezais e a própria baía. Como vê esta questão e como é que ela se reflecte nos seus trabalhos?

Hoje, as minhas telas retratam a minha inquietação perante estas situações que não posso modificar. Vejo a minha cidade a ser alterada todos os dias, transformando-a num lugar que não reconheço. Olho para os morros e vejo a mata substituída por casas construídas cada vez mais no alto. Quando saio de casa, não vejo a baía da Ilha Grande no seu todo, só a metade, porque a outra metade está bloqueada por um muro enorme. Quase todo o casario colonial foi já destruído e o que resta está totalmente modificado. Mas restam-me as lembranças e as histórias que guardo na memória e que transponho para as minhas telas para que os outros também as guardem e não se perca a identidade e a história de Angra dos Reis. Com o desenvolvimento do meu trabalho com PET, aconteceu uma coisa interessante. Comecei a encontrar, na minha varanda, sacolas com garrafas de refrigerantes. São os meus vizinhos que, agora, ao contrário de as deitar no lixo, as guardam em sacolas e as colocam à minha porta. Neste gesto, vejo várias coisas. Primeiro, o reconhecimento pelo meu trabalho, vejo a solidariedade dos vizinhos ajudando-me a conseguir "matéria prima" ? é bom que se diga que eu nem bebo refrigerante ? e vejo também a preocupação deles em dar um fim mais nobre a tanto lixo. Fico-me questionando se isso já não é um começo de consciência ambiental. Acho que sim.

Você, então, é uma pessoa também preocupada com questões ambientais?

Como já disse, estou a reeducar-me ? leio, ouço e aprendo sobre essas questões que hoje estão em destaque. Entendo que os problemas ambientais não são novos, mas eu, como muita gente, só agora, começo a despertar para eles. Em Angra, as mudanças ambientais aconteceram tão rapidamente que a sua população não conseguiu perceber as possíveis consequências dessas mudanças. É claro que muita coisa se modificou, mas eram lentas demais, e a população habituava-se e nem sentia. Porém, na década de 70, com a construção da Usina Nuclear Angra I e com o início da construção da estrada BR-101, que corta o país de Norte a Sul pelo litoral e que atravessa o município de Angra de um lado ao outro, foi que as mudanças começaram a acontecer da noite para o dia. A população aumentou muito. Só para dar uma amostra deste crescimento, na década de 80-90, a população aumentou seis vezes. Isso, numa cidade pequena como Angra, foi fatal. Não tínhamos espaço, nem infra-estrutura urbana para suportar tal "inchaço". Foi isso mesmo que aconteceu, a cidade de Angra dos Reis sofreu um "inchaço". Com isso, aumentaram em muito os aterros na orla marítima e a população mais pobre, sobretudo os pescadores, começaram a subir pelas encostas dos morros, cortando o mato para construir as suas casas, ou deslocaram-se para as periferias do centro da cidade. Foram sendo "inventados" novos espaços planos e inclinados, novos bairros surgiram e outros, antigos, cresceram. A consequência deste crescimento caótico é sentida, sobretudo, na época das chuvas. Os morros, sem a protecção da cobertura vegetal, ficam encharcados e começam a desabar. E isso acontece todos os anos em que chove muito.

Mas Angra ainda tem muita coisa interessante. Se uma pessoa quisesse conhecer a cidade, o que lhe mostraria?

Em primeiro lugar, mostrar-lhe-ia o que sobrou do casario antigo, do período colonial, e, com ele, um pouco da nossa história. Contaria, também, algumas das lendas que estão entranhadas no nosso imaginário e que fazem parte daquilo que somos. Levaria essa pessoa para ver as ruínas do Convento de São Bernardino de Sena, o Convento do Carmo, a Bica da Carioca, o mercado de peixe. Visitaria o Museu de Arte Sacra, o Teatro Municipal e alguma exposição de arte que estivesse a decorrer. Mas não me esqueceria de ir ao cais de Santa Luzia, embarcar numa traineira e levá-la para conhecer algumas das nossas ilhas. Atracaria, por fim, na Freguesia de Santana e convidá-la-ia para visitar a Igreja de Santana e depois para um mergulho, para mostrar os meus cenários predilectos. Se tivéssemos sorte, encontraríamos tartarugas; cardumes de sargentos, com as suas listras pretas e amarelas, ou de arraias, que mais parecem borboletas a voar no mar; muitas algas de diferentes cores e texturas e, quem sabe, alguns golfinhos como esses que pintei em azul e amarelo e nos quais inseri pedaços de PET.

NOTA DO EDITOR:
Esta entrevista teve uma primeira publicação no livro Muros e Redes, editado pela Profedições, Porto, Dezembro, 2007. Com as doze entrevistas que constituem este livro procura-se mostrar a importância de conhecer o que se passa dentro e fora da escola e de como a aprendizagem obedece mais a projectos pessoais do que à ditadura dos programas, currículos e percursos escolares uniformes. jps


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 175
Ano 17, Fevereiro 2008

Autoria:

Lyla Melo
Aluna do Curso de Pedagogia da Universidade Federal Fluminense, em Angra dos Reis
Neila Guimarães Alves
Universidade Federal Fluminse; Grupo de Pesquisa "Redes de Conhecimentos em Educação e Comunicação: Questão de Cidadania", do Laboratório Educação e Imagem / UERJ
Lyla Melo
Aluna do Curso de Pedagogia da Universidade Federal Fluminense, em Angra dos Reis
Neila Guimarães Alves
Universidade Federal Fluminse; Grupo de Pesquisa "Redes de Conhecimentos em Educação e Comunicação: Questão de Cidadania", do Laboratório Educação e Imagem / UERJ

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