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As «Mentiras» que a(o)s Professora(e)s vão (ter de) ensinar(III)

... "a forma como a sociedade selecciona, classifica, distribui, transmite e avalia o conhecimento educacional que considera como oficial, reflecte não só uma determinada distribuição de poder, como também os princípios de controlo social".

Basil Bernstein (1971: 47)

Como tivemos oportunidade de desnudar em edições anteriores, vários são os autores - entre eles Noam Chomsky, Howard Zinn, Tzvetan Todorov, bell hooks, etc. - que de uma forma consistente têm desafiado como tem sido edificada muita da história da civilização ocidental. Entendem-na como fundamentada numa mentira secular, uma mentira que tem vindo a ser reproduzida nos conteúdos curriculares da escolarização, através, por exemplo, dos manuais escolares. Importa nesta terceira parte da minha análise em torno das "Mentiras" que a(o)s Professora(e)s vão (ter de) Ensinar" continuar a desnudar algumas das falácias dos conteúdos da escolarização - lamentavelmente alguns educadores e educadoras não querem admitir que uma das grandes reformas que urge fazer é a dos conteúdos - tentando articular com aquilo que denomino por 'vinhetas da omissão' que nos emprestam José Barata-Moura (2007) e Slavoj Zizek (2006), respectivamente, no que tange à 'verdade', e com as quais remataremos a nossa análise. Debrucemo-nos, de uma forma breve, sobre a investigação efectuada em torno de determinados manuais nos Estados Unidos, Inglaterra, Japão, e Suécia. James Loewen, um sociólogo que passou dois anos no 'Smithsonian Institute' a investigar 12 manuais de história do ensino secundário 'norte-americano', muito na linha do que denunciam Noam Chomsky, Howard Zinn, Tzvetan Todorov e bell hooks, desnuda o modo como Colombo é 'pintado' aos alunos e docentes. A falácia é tão clara que se pode observar de imediato pela precipitação e simplismo em dividir o período histórico nos Estados Unidos em 'pré-colombiano, colombiano e pós-colombiano'. Mais, não obstante a "cega sede de Colombo por riqueza, como o grande motivo da sua vinda para as Américas, é de pasmar como os manuais, pura e simplesmente, minimizam esse objectivo" (1995: 30). Também para James Loewen, (1995) a forma como os "manuais de história descrevem Colombo reforça a tendência de se evitar pensar Colombo como um processo de dominação, quando na verdade, logo o seu primeiro retrato em terras das Américas é todo ele emblemático de um processo de dominação" (1995: 35). Na verdade, Colombo, reclamou ser dono e senhor de tudo o que via [e não via] ainda nem sequer tinha desembarcado" (Loewen, 1995: 35). Todavia, este processo surge tratado nos manuais ? pela mão dos docentes ? como uma "celebração que promove a noção de que roubar a terra de outros e dominá-los era algo inevitável até mesmo naturalíssimo" (1995: 35). Ainda que seja doloroso admitir, o facto é que Colombo "introduziu dois fenómenos que revolucionaram as relações raciais e transformaram o mundo; por um lado o roubo de terras, da riqueza e de mão de obra dos povos indígenas, levando-os quase ao seu extermínio; por outro o negócio da escravatura transatlântica que construiu uma subclasse racial" (1995: 50). Inegavelmente, tal como para Noam Chomsky, Howard Zinn, Tzvetan Todorov e bell hooks, também para James Loewen (1995), o cunho de Colombo na história não pode deixar de ser, em essência, assassinatos em série, exploração, violações, numa só palavra, genocídio. Infelizmente, esta construção histórica não se limita apenas aos manuais escolares dos Estados Unidos, escorrendo por muitos outros países do ocidente, no qual Portugal não se constitui como excepção. Outra extraordinária análise em torno das discrepâncias nos conteúdos vertidos nos manuais surge-nos pelas mãos de Stuart Foster e Jason Nicholls. Os autores, conduzidos pela concepção política de Raymond Williams da tradição selectiva do conhecimento (cf. Paraskeva, 2001), embrulham o escopo da sua investigação na seguinte questão: "Como é que nações contemporâneas ? como a Inglaterra, o Japão, a Suécia e os Estados Unidos ? descrevem o papel dos Estados Unidos na II Guerra Mundial?" (Foster e Nicholls, 2003: 25). Não surpreendentemente, as discrepâncias nos manuais de cada um desses países são abismais. Se por um lado, "os manuais escolares norte-americanos enfatizam essencialmente e entendem a participação dos Estados Unidos na II Guerra Mundial como algo decisivo, destacando as batalhas mais emblemáticas travadas pelo contingente norte-americano na Europa" (Foster e Nicholls, 2003: 27), por outro, os manuais escolares de países como a Inglaterra, Suécia e Japão apresentam um quadro bem diferente. Assim, para os manuais escolares de Inglaterra, pese embora não ignorem a importância da participação dos Estados Unidos no conflito, o facto é que essa participação não é tida como tão significativa para a vitória final sobre o nazismo como as participações das forças do império britânico e do antigo exército vermelho" (Foster e Nicholls, 2003: 27). Mais, para os britânicos, a participação das forças 'norte-americanas' no conflito é vista como uma espécie de 'joint venture' "envolvendo parceiros iguais, e não como uma força aliada dominada pelos Estados Unidos" (Foster e Nicholls, 2003: 27). Já os manuais escolares japoneses desviam o escopo da II Guerra Mundial da Europa para o Pacífico. Aqui, claramente, acontecimentos como os de 'Pearl Harbor' assumem um notável destaque "em contraste com os manuais escolares norte-americanos, em que os Estados Unidos não aparecem como uma vítima inocente de um 'ataque surpresa' [ou seja,] 'Pearl Harbor é descrito como fundamento dos antagonismos entre os Estados Unidos e o Japão, divergências que já se vinham a esboçar de uma forma clara muito antes de 1941 e que conduziram à inevitável guerra" (Foster e Nicholls, 2003: 27). Por outro lado, os manuais escolares suecos colocam a sua tónica no período que antecede a entrada dos Estados Unidos no conflito ? sobretudo na frente Leste (Foster e Nicholls, 2003: 27). Esta análise de Stuart Foster e Jason Nicholls, ao colocar a nu as discrepâncias nos manuais escolares ? perante a II Guerra Mundial ? consolida as nossas preocupações, não só em torno das contradições inerentes à edificação peregrina de uma realidade que se quer seja lida e tida como monolítica, como ainda sobre a forma como o conhecimento curricular surge veiculado e perpetuado nas salas de aulas. Como teremos oportunidade de deixar dito mais adiante, a arrogância do ocidente não repousa apenas na forma como (des)constrói 'o outro'. Radica também nas perversas estratégias que vão determinando as batalhas semânticas que se urdem ao nível do senso comum que espelham um projecto de higienização cultural, acima de tudo, no seio do próprio 'dito' e 'tido' ocidente. É aliás, neste contexto, que as análises de Jean Anyon (1983), e Patrick Brindle e Madeleine Arnot (1999) exibem toda a sua vitalidade crítica. Num estudo empírico em torno dos dezassete manuais escolares de história mais conhecidos e utilizados nos Estados Unidos, Anyon salienta que o conteúdo de tais manuais "independentemente de se autoidentificarem como estruturados num análise objectiva, limita-se a servir os interesses de determinados grupos em detrimento de outros" (Anyon, 1983: 37). Como afirma Anyon, uma das marcas típicas dos manuais escolares dos Estados Unidos ? e não só ? repousa precisamente nas suas "omissões, estereótipos e distorções", no que tange aos nativos norte-americanos, negros e mulheres, que mais não traduz do que "o poder extremamente fraco destes grupos" (Anyon, 1983: 49). Anyon (1983: 49) argumenta que "o currículo escolar tem contribuído para a formação de atitudes que têm facilitado os grupos sociais mais favorecidos, cujo conhecimento surge legitimado pela escolarização, a gerirem e a controlarem a sociedade". Dito de outra forma, os manuais escolares não só expressam as ideologias dos grupos dominantes, como também ajudam na construção de um conjunto de atitudes que fundamentam a sua posição social. Leitura idêntica ? muito embora com uma ênfase muito maior nas dinâmicas de género ? surge tratada por Patrick Brindle e Madeleine Arnot (1999: 108) que identificam três 'lentes' nos manuais escolares, nomeadamente "exclusão, inclusão e engajamento critico"; os autores reclamam a 'lente' exclusiva como a mais comum, uma estratégia que "exclui quer a esfera privada, quer as mulheres da sua construção do domínio político" (Brindle e Arnot, 1999: 108). Neste grupo de manuais, verifica-se claramente o "pouco cuidado e desinteresse nas posições históricas das mulheres, [ou melhor] é muito habitual que as mulheres nem sequer sejam referidas, como parte integrante da história" (Brindle e Arnot, 1999: 110). Há, no entanto, um grupo muito pequeno de manuais, que "tenta incluir a mulher e a esfera privada de formas muito diferentes" (Brindle e Arnot, 1999, 108). Ou seja, existe uma minoria muito pequena de manuais escolares que incluem as representações das mulheres como cidadãs, todavia, sem excepção, nenhum deles trata a mulher "como agente político activo" (Brindle e Arnot, 1999, 112). A mulher neste tipo de manuais escolares surge inclusa como uma espécie de 'acrescento'. Uma percentagem ainda mais reduzida de manuais escolares revelam aquilo que Patrick Brindle e Madeleine Arnot (1999) denominam por engajamento crítico, em que o papel da mulher surge realçado, quer no domínio público, quer no privado. É óbvio que a 'leitura' que aqui proponho nos abre a porta para inúmeras questões extremamente complexas, como por exemplo os poderosos debates entre Marxistas e Neo-Marxistas em torno da 'falsa consciência' e 'consciência parcial' e a necessidade ou não, de uma abordagem neo-marxista e pós-estrutural conjunta, relativamente às grandes questões educacionais e curriculares, nomeadamente a problemática do conhecimento. Na verdade, se por um lado o modo como são 'montados' os conteúdos curriculares não constitui um 'cheque de credibilidade' à velha questão marxista de 'falsa consciência', por outro lado não deixa de ser verdade também que tais conteúdos ? sobretudo porque se teima em não os questionar ? continuam 'segundo a segundo', pelas salas de aula a fortalecer o continuado processo de 'falsa consciência', um processo que Dwayne Huebner (1959), curiosamente propõe desconstruir através 'do materialismo dialéctico' como a melhor forma de 'fazer currículo'. É aliás contribuindo para este 'dialogismo' que Michael Apple adianta que "não obstante ser uma pura mentira que Colombo descobriu as Américas, há alguma perspicácia no modo como essa 'verdade' é tratada e montada [ou seja] muitas vezes, as questões mais complicadas não podem ser tratadas como se de uma mentira se tratasse, apesar de, na sua essência, serem uma mentira" (cf. Paraskeva, 2008).
É o contexto criado por estes processos de obliteração histórica da verdade (cf. Zinn e Macedo (2007) até aqui tratados que nos abre a porta ao que anteriormente denominamos por 'vinhetas de omissão' e que reforçam o raciocínio trazido à colação por Basil Bernstein (1971: 47) - "a forma como a sociedade selecciona, classifica, distribui, transmite e avalia o conhecimento educacional que considera como oficial, reflecte não só uma determinada distribuição de poder, como também os princípios de controlo social".
A primeira vinheta ? magna et latebrosa quaestio ? surge-nos da abordagem proposta por José Barata-Moura (2007). Ao desmontar o urdir da mentira José Barata-Moura, vinculando-se à demiurga contribuição de Aurélio Agostinho ? corria o século IV ?, não deixa de classificar a "mendacium (mentira) como magna et latebrosa quaestio ? uma questão que se apresenta cheia de esconderijos (uma tradução mais literal de latebrosa que prefere a outras versões que a dão logo figuradamente no registo do mistério" (Barata Moura, 2007: 17). E é mesmo daqui que José Barata-Moura parte para uma das questões mais importantes no que tange aos processos de omissão da verdade. A questão, prossegue o autor 2007: 17) "é, de facto, magna, porque ? contrariamente ao que de imediato tantas vezes é suposto com ligeireza e pressa ? ela não se resolve, ou decide, pela mera aplicação mecânica de uma grelha binária em que o «verdadeiro» e o «falso» estaticamente se opõem e reciprocamente se excluem".
Daí que, quer no plano do subjectivo, quer no plano do objectivo, a mediacum "mobiliza e faz intervir dimensões e patamares de realidade que se revelam de uma complexa escrita polifónica que desafia e põe em crise qualquer intento de transparente linearidade de leitura" (Barata Moura, 2007: 17). Ao não poder ser desafiada com base no seu oposto, a mediacum é mesmo uma magna et latebrosa quaestio que 'nada silenciosamente', percorre espaços e tempos da escolarização, legitimando assim determinadas construções do real que vão destacando determinadas tonalidades e ofuscando tantas outras.
Em jeito de desafio, importa, pois, tentar compreender qual a cor da ideologia dos conteúdos da escolarização. A resposta a esta questão obriga-nos a entrar na segunda vinheta que desenhamos com base no raciocínio de Slavoj Zizek (2006). Slavoj Zizek desmonta a tensão verdade ? não verdade, com base na metáfora da cor. A estória merece destaque
Trata-se de uma velha piada que circulava na defunta RDA sobre um trabalhador alemão que encontrara trabalho na Sibéria. Consciente de que todas as suas cartas serão lidas pelos censores, explica aos amigos: «Estabelecemos um código: se receberem uma carta minha escrita a tinta corrente, azul, estou a dizer a verdade; se ela estiver escrita a tinta vermelha estou a mentir». Um mês depois, os seus amigos recebem a primeira carta escrita a tinta azul: «Aqui tudo é maravilhoso, as lojas estão abastecidas, a comida é abundante, os aposentes espaçosos e bem aquecidos, as salas de cinema passam filme socidentais, há muitas raparigas disponíveis ? a única coisa que falta é a tinta vermelha» (Zizek, 2006: 17)". A descrição é desnudadamente catafórica. Slavoj Zizek (2006) constrói-nos como se mente a mentira provocando a verdade, importantíssimo sobretudo numa era de efeitos devastadores das políticas neo-centristas radicais contemporâneas (cf. Paraskeva, 2007). Esta questão não é de todo uma questão menor. Só enfrentando este desafio podemos desmontar visões e práticas escolares que promulgam uma visão distorcida de sociedade que privilegia o masculino, heterossexual, loiro e de olhos azuis (Torres Santomé, 1996); podemos destruir convenientes construções sociais 'nós ? outros', e que nos empurram, como denuncia e bem Rui Tavares (2007), para conceitos perigosos em torno, por exemplo, da problemática da imigração, em que, como sempre, a identidade 'do (agora) outro' surge convenientemente conjugada na terceira pessoa; podemos compreender porque razão 'o império regressa sossegadamente a casa'; podemos desmontar convenientes literacias que se desenham com base na 'nefelibática' crença da existência de um ocidente monocrómico; podemos desafiar a pedagogia da grande mentira (cf. Macedo e Zinn, 2007). Este é 'o grande poder', o grande desafio de uma educação para uma sociedade mais justa e igual.

João Paraskeva

REFERÊNCIAS

Anyon, J. (1983) Workers, Labor and Economic History, and Textbook Content. In Michael Apple & Lois Weis (Eds.) Ideology and
Practice in Schooling. Philadelphia: Temple University Press, pp., 37-60.
Barata-Moura, J. (2007) Da Mentira. Um Ensaio ? Transbordante de Errores. Lisboa: Caminho.
Bernstein, B. (1971) On the Classification and Framing of Educational Knowledge. In Michael F. D. Young (ed.) Knowledge and Control. New Directions for the Sociology of Education.
London: Open University Set Book, pp., 47 ? 69.
Brindle, P. & Arnot, M. (1999) England Expects Every Man to do his Duty: The Gendering of the Citizenship Textbook 1940-1996. Oxford Review of Education. 25 (1,2), pp., 103- 123.
Foster, J. & Nicholls, J. (2003) Portrayal of America's Role during World War II: An Analysis of School History Textbooks from England, Japan, Sweden, and the USA. Study Presented at the Annual Meeting of the American Educational Research Studies Association, Chicago, April, 21-15.
Huebner, D. (1959) Dialectic Materialism as the Best Way of Doing Curriculum. Artigo não Publicado.. Loewen, James (1995) Lies My Teacher Told Me: Everything your High School History Textbook Got Wrong. New York: New Press.
Macedo, D, e Zinn, H. (2007) Poder, Democracia e Educação. Lisboa: Edições Pedago.
Paraskeva, J. (2001) As Dinâmicas dos Conflitos Ideológicos e Culturais na Fundamentação do Currículo. Porto: ASA.
Paraskeva, J. (2007) Kidnapping Public Schooling: Perversion and Normalization of the Discursive bases within the Epicenter of New Right Educational Policies. Policy Futures in Education, 5 (2), pp. 137 ? 159.
Paraskeva, J. (2008) Here I Stand. A Long Revolution. New York: Sense Publishers.
Tavares, R. (2007) Ilegais. Jornal Público. Quarta ? Feira, 19 de Dezembro.  Torres Santomé, J. (1996). The Presence of Different Cultures in
Schools: Possibilities of Dialogue and Action. Curriculum Studies, 4 (1), pp. 25-41.
Zizek, S. (2006) Bem-Vindo ao Deserto do Real. Lisboa: Relógio D'Água.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 175
Ano 17, Fevereiro 2008

Autoria:

João Paraskeva
Universidade do Minho
João Paraskeva
Universidade do Minho

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