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O cinema e a escola na era digital

As primeiras lembranças da vida são lembranças visuais. A vida, na lembrança, torna-se um filme mudo. Todos nós temos na mente a imagem que é a primeira, ou uma das primeiras, da nossa vida. Essa imagem é um signo, e, para sermos mais exactos, um signo linguístico, comunica ou expressa alguma coisa.

Pier Paolo Pasolini


A escola. Ainda hoje, passados tantos anos após a primeira experiência de contacto com a escola, guardo na memória a primeira imagem que dela construí. Lugar enfadonho, sem criatividade, repetitivo, triste? Como já sabia desenhar todas as letras, ler alguns textos aprendidos de cor de tantas vezes os ouvir ler ao meu irmão, a professora, tendo-se apercebido que desenhava mal a letra "f", "obrigou-me" a escrevê-la o dia inteiro. Esta imagem negativa não me demoveu a desistir da escola (lugar com que sonhava e desejava antes do malfadado primeiro dia de aulas), a fazer dela um projecto de vida.
Esta imagem trouxe-me à memória uma cena, representada no filme de Aniki-Bóbó de Manoel de Oliveira, em que um aluno chega atrasado à aula e é castigado pelo professor, que o obriga a sentar-se num banco alto e a colocar na cabeça um chapéu que termina com dois grandes bicos. Os colegas deixaram de estar atentos ao professor que olhava para o livro e passaram a desviar a sua atenção para o Pistarim. Esta cena de escola ficcionada é interessante para ser visionada no espaço escolar e debatida tendo em conta alguns aspectos: a punição, o castigo, a desatenção, a distracção?
A escola como um lugar de poder, de vigilância, de controlo e de correcção? Como um lugar de desafio e, por vezes, de resistência à disciplina, um lugar em que o mais ínfimo episódio pode ser aproveitado pelos alunos para gozarem de um momento de desatenção? Em que medida a indisciplina pode ser interpretada como uma consequência do facto de vivermos numa sociedade constituída por lugares sociais fechados por onde transitamos diariamente: a família, a escola, a fábrica, a empresa?? Ou será uma forma de resistência à norma, própria da cultura juvenil?
O cinema e a escola. Há alguns anos atrás, o cinema não entrava na escola. Talvez por ter sido considerado durante muito tempo, desde o seu nascimento, em 1895 (as primeiras vistas Lumière representavam o "real", o quotidiano: as brincadeiras das crianças com bolas de neve, a refeição do bebé, o jogo de cartas, a chegada do comboio à estação, a saída dos operários da fábrica, ?) uma forma de distracção destinada ao povo, ao operariado que, nessa época, começava a ter algum tempo livre, que ocupava indo por exemplo ver, inicialmente, as vistas Lumière, depois os quadros de Méliès?, portanto uma arte não adequada à elite.
Actualmente, o cinema continua a contar histórias. No entanto, com o advento das novas tecnologias, nasceram novos suportes de produção. Em 1995, a JVC lançou no mercado a câmara de vídeo GR-DV1, considerada a primeira câmara digital do tamanho do bolso. A câmara-caneta (esta expressão foi usada, pela primeira vez, em 1948, por Alexandre Astruc), que permite ao seu utilizador tomar notas, por exemplo, numa situação de trabalho de campo; exprimir o seu pensamento com imagens e sons, em suma, a câmara como um instrumento de uma escrita. Outras das novidades deste suporte são o seu preço mais acessível, o seu peso reduzido, a sua portabilidade, a facilidade de manuseamento e de transferência das imagens captadas para o disco duro de um computador para posteriormente serem visualizadas repetidamente e editadas na mesa de montagem digital, através de software gratuito de edição. Ainda num formato mais reduzido que as câmaras de vídeo, as câmaras fotográficas e os telemóveis são ferramentas de filmagem, que podem ser usadas, por exemplo, para a realização de trabalhos escolares.
Também surgiram novos suportes de difusão das obras cinematográficas. Durante muito tempo, circunscritas aos espaços das salas de cinema, depois aos televisores e aos leitores de vídeo, as imagens passaram a ser visualizáveis em DVD (os primeiros leitores de DVD foram lançados no Japão no final de 1996, depois nos Estados Unidos no início de 1997; em França, no início de 1998. O DVD cria uma história paralela, complementar à obra cinematográfica, na medida em que, para além do filme, que pode ser visto de forma linear ou por capítulos segundo a sequência desejada pelo usuário, pode integrar informações sobre os bastidores da produção, planos ou cenas que não foram integrados na versão final, propostas de variantes para o final do filme, entrevistas ao realizador e/ou aos actores, fotografias, textos escritos quer por teóricos do cinema, quer pelos críticos de cinema, ?), em jogos interactivos, na Internet (o Youtube, um sítio na rede, fundado em 2005 que possibilita o visionamento, mas também a transferência, para o servidor, de vídeos, vídeo-clips, produzidos por qualquer um dos espectadores, criando assim uma janela aberta para a divulgação e partilha de produtos que, de outro modo, talvez nunca tivessem a possibilidade de ganhar vida, de serem vistos e obterem um feedback).
Os filmes, ainda que possam ter um carácter lúdico, são materiais pedagógicos usados pelos professores de distintas áreas de saber e, para além disso, há mesmo alguns programas do ensino secundário que contemplam o audiovisual como uma das várias áreas de estudo, ou então, como um recurso usado para apresentação de resultados de trabalhos de investigação. Aqui, coloca-se um problema: Que docentes estão preparados para ensinar os alunos a filmar, a construir uma narrativa fílmica, a produzir um exercício fílmico em suporte digital? Como contornar esta situação? Recorrendo a elementos exteriores à escola que se limitam a dar uma breve "pincelada"? Até que ponto a sua inclusão como uma área de formação de professores não seria uma medida a pensar no sentido de resolver este problema?

Maria Fátima Nunes


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 175
Ano 17, Fevereiro 2008

Autoria:

Maria Fátima Nunes
Centro de Estudos da Migrações e das Relações Interculturais (CEMRI), Laboratório de Antropologia Visual, Universidade Aberta. nunes.mfatima@gmail.com
Maria Fátima Nunes
Centro de Estudos da Migrações e das Relações Interculturais (CEMRI), Laboratório de Antropologia Visual, Universidade Aberta. nunes.mfatima@gmail.com

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