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Penas e sentenças

O peso vulgar do nosso protesto vai marcando sobre o humo que dá o pão, sela a lacre em cada passo o caminho e todos os segredos que ficam para trás perpetuam-se sob a forma das pegadas. Com arreio a jeito sobeja o zurrar em que rimos da própria figura, nem chega a ser um chamamento, exibindo a ternura do olhar vendado e o pêlo que uma escova insiste em domar coçando o flanco, esse ponto preciso que habituámos para os brasões de fogo a enaltecer-nos perante os suseranos.
Na albarda vai um pouco de tudo, achados que lhe acrescentam o peso, pensamentos que são grande novidade para quantos não crêem serem os seres todos eles pensantes, opiniões para a gula dos salteadores, sentenças e presentes que os moinhos cuidam sem se perceber a arte que lhes faz as velas porem-se de feição ao vento. Admoestados, ensinados, corrigidos, premiados, baixamos a garupa de cansaço e teimosia, e miraculosa desce uma cenoura confinada com o ângulo dos apetites, uma cenoura que num exercício de magia muda de cor, que nos conquista à medida das ementas predilectas fazendo-se uma delas, que se dá a provar como uma miragem consistente, com o tamanho que não sacia e o sabor que nos vicia com os panos de fundo dos moinhos a girar, a girar indolentes perante o pasmo e a miopia.
Todos vamos fincando protestos, alegres se nos aliviam por pouco que seja, dando o exemplo do esforço se o humor ajuda depois de bebermos e nos revermos em toda a pujança reflectida pelos bebedouros. Manhosos, e as manhas também têm nome de lucidez e inteligência, procuramos sempre a companhia dos que carregam com o mesmo destino, dos que trazem, sobre si, confidências numa bolsa clandestina e inesgotável, disponível para quando o passo se acerta e as sombras dão uma pela outra. Não é novidade, pelo exemplo a que não se escapa de regresso ao abrigo dos estábulos, que iremos partilhar uma horta cinzenta e calada, cabisbaixos, solitários na nossa inutilidade, pelados onde outrora se nos reluzia a vaidade, entregues a uma cerca desnecessária porque não haverá então de que fugir, sem arreio ou albarda, apenas com uma marca velha sobre o flanco que possa valer o respeito. Pela tarde, o zurrar aos moinhos torna-se um convite sem eco, as velas revelam-se em todo o seu engenho, e os moleiros trocam as imprecações por desafios cúmplices, por saudações de carinho com o timbre da sua pena de donos contristados.
Para alguns é tempo de meditar nos conselhos que desdenharam. Como o de que não se deve muito ao deslumbramento por predicados e privilégios que sejam de outra estirpe. É a tentação mais comum, o prazer impossível de regatear, a condição que amarga e cujo sabor permanece por mais contrições que se inventem. Dá mula, e mula não é coisa boa. Mula vê e ouve, mula sabe e não deve saber, mula leva e traz, faz de tudo um pouco sem fazer nada bem, mula quer o que não pode, tem amigos sem os ter, mula não é carne nem peixe, e mesmo quando insiste não tem voz, mula só é útil enquanto for mula e, como não pode deixar de ser mula, nem será veloz nem bem-vinda ao moinho, mula tem forma de degredo o que é pior do que poder zurrar à-vontade. Aspirou a sê-lo e não se livra de ter que esquecer, de querer não ver nem ouvir, como toda a mula que se preza tem direito a outorgar-se os privilégios que a fazem exemplo de coragem e força perante a adversidade. Sempre com a companhia dos da sua casta, a que toma conta desta quinta em que os preconceitos se cultivam e crescem bravios.
Por muitas sentenças pesadas que se lavrem, as penas serão sempre leves se comparadas com aquelas que, em surdina, se abatem sobre a sorte de quem teve que ditar enquanto se cumprem umas e outras. Talvez um dia, talvez nos alijem dos pesos sem utilidade para carregarmos até às mós alimento que é de todos.

Luís Miguel Brandão Vendeirinho


  
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Edição:

N.º 174
Ano 17, Janeiro 2008

Autoria:

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

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