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Por uma libertação sustentada dos processos de fabricação e de transmissão de conhecimentos

As ciências "duras", ou "exactas", ou mesmo "naturais" apresentam-se muitas vezes, relativamente às ciências sociais e humanas, com um indisfarçado autoritarismo, sob a face pseudo-ingénua da verdade insofismável que é suposto revelarem-nos. Enquanto tais ciências - as primeiras, as autênticas - resolveriam problemas, não se perdendo em discussões "filosóficas", as segundas embrulhar-se-iam permanentemente em questões, de tal modo complicadas e "subjectivas" que, em vez de apresentarem soluções para os problemas, muitas vezes só serviriam para criar mais problemas e adiar as soluções.
Esta visão esterilizada da "ciência autêntica", contraposta a um conhecimento impotente, porque constantemente embaraçado por problemas que levanta, é de natureza totalmente ideológica e de cariz autoritário.
Há, evidentemente, muitas "filosofias" subjacentes a qualquer conhecimento humano, e sempre modos de construir ciências alternativas, desde que se saiba ou queira pôr em causa evidências tidas como insofismáveis, sagradas, que não passam de axiomas, conceitos, ideias construídas, mas aparecem travestidas como se fossem pontos de partida absolutos, verdades indiscutíveis. Tais "verdades" formam sistemas entrincheirados em redutos e redes que comunicam através de nomenclaturas, pressupostos, e metodologias que não são acessíveis ao comum dos mortais.
São protocolos de diferenciação e distinção, quer dizer, modos de organizar a economia política do saber, que se apresentam como o único saber, o saber natural (embora "a contrario" do senso comum), na medida em que assim o seu poder é incontestável. Ou seja, uma economia política, um sistema organizado de poder, aparece sob a face de um poder incontestável, porque oculta no seu próprio processo de apresentação a intenção de se apagar como uma opção económico-política. Apresenta-se como algo de "angélico" (ciência movida pela curiosidade de saber e pelo serviço ao próximo - todo o discurso político é sempre feito em nome do bem geral...) para reforçar a condição de "anjos" (ingénuos) dos seus destinatários.
Não há porém verdades indiscutíveis. Há uma política, ou políticas, de "naturalização" e de socialização de verdades. Mas a maior parte das pessoas não dispõe de conhecimentos para poder contestá-las. Mais: a maior parte das pessoas não dispõe da imaginação (da vontade política, ou poder) de se dispor a poder discuti-las.
Não há aqui qualquer "complot", ou "centro maldoso", maquiavélico, de onde irradie este sistema. Ele certifica-se todos os dias pelo seu próprio funcionamento, tanto dos sujeitos mais activos, como dos mais passivos, e sobretudo das margens contestatárias, que funcionam como diversão facilmente ridicularizável. Há uma espécie de "autopoiese" na sua reprodução. Todos somos formigas ao serviço deste formigueiro.
A própria complexificação e especialização dos saberes impede constantemente a sua reunificação crítica sob a égide de uma ideologia desvelada. O desdobramento das especializações compartimenta os agentes produtores e manieta, sem que eles saibam, os destinatários, que se não imaginam a poder forjar um discurso crítico.
E quando uma dessas políticas nega ou desvaloriza as outras, tal ciência não está ao serviço do conhecimento, mas sim, a montante disso, de uma determinada política, que pretende passar por insofismável.
Ou melhor, não há nunca, mesmo nas ciências mais exactas, "conhecimento puro", o que seria uma teologia, uma religião, mas sempre um conhecimento como um produto histórico, resultado de um processo de produção, sempre contingente, e apenas dominante porque é suportado por redes nacionais e internacionais de financiamento e validação. São redes que funcionam a várias escalas por forma a reforçarem mutuamente as alianças entre os financiadores, as revistas que publicam os trabalhos, os laboratórios que os produzem, etc., etc. Mas para o público as "ciências" aparecem geralmente "puras", insofismáveis, brancas como as batas dos cientistas, esterilizadas como as luvas dos médicos. Só uma criança acredita nisso.
Uma atitude que pretenda disfarçar ou recalcar estas realidades bem conhecidas não é de natureza democrática. É uma tecnocracia de tipo autoritário. Essa tecnocracia globalizou-se e é hoje a ideologia dominante.
A ideologia é o "ambiente" em que passa por natural e indiscutível (isto é, que rejeita como intruso todo o pensamento crítico das suas bases de sustentação) aquilo que é uma mera construção contingente, histórica e socialmente determinada, do trabalho de produção de conhecimento.
Por cada sistema de trabalho de produção de conhecimento apresentado como indiscutível, porque é dominante, hegemónico, há mais mil possíveis - passe a expressão meramente enfática.
Trabalhar para trazer à luz estas "ausências" é trabalhar politicamente por um saber plural. Não se trata de um relativismo anárquico. Trata-se de conquistar para vários saberes direito igual de cidadania.
E trata-se sobretudo de, relativamente a muita ciência que aparece revestida de poder soberano, tirar-lhe a bata branca e mostrar que, por debaixo dessa roupagem, não só vai nua, como nem sempre é bonita. Faz sistema com os modelos burocráticos de sociedade que nos asfixiam, que se generalizaram a todo o planeta, e que já tiveram e têm versões (aplicações) horripilantes, nomeadamente no domínio militar, conduzido por ideologias totalitárias e agressivas. Temos de estudar para mostrar que as próprias bases e axiomas de muitas ciências, por mais produtivas e úteis que sejam ou pareçam, são apenas escolhas metodológicas e teóricas entre milhares de outras possíveis.
Não se trata de contestar de fora. Trata-se de fazer uma antropologia crítica do próprio processo de construção do conhecimento e dos meios mediáticos e outros com que ele nos volta a face sorridente do líder incontestado, do líder todo poderoso, que exerce a autoridade e a hegemonia para o nosso bem.
Esta crítica, esta antropologia não é ela própria, evidentemente, um poder soberano, uma verdade insofismável. Apenas uma perspectiva minoritária que procura constantemente reorganizar-se para poder olhar, face a face, a nudez bem vestida da ciência imponente e imposta como ideologia.

Vítor Oliveira Jorge


  
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Edição:

N.º 174
Ano 17, Janeiro 2008

Autoria:

Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP
Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP

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