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"Uma imagem vale mais do que mil palavras?"

Um dia, me deparei com uma reportagem de Roberta Bencini sobre avaliação, feita para a Revista Escola. A matéria traz, como novidade, o uso de recursos audiovisuais na elaboração do "boletim escolar":
Algumas escolas anexam ao texto descritivo fotografias, fitas de vídeo e portfólios. Seja qual for o produto final, o resultado depende de uma rede que começa com o projeto pedagógico da escola, passa pelo plano, anual ou semestral, até chegar ao planejamento do professor (Bencini, 2006).
Não é minha intenção levantar qualquer suspeição sobre tais iniciativas, até porque acredito que os recursos tecnológicos podem e devem ser usados para deixar os processos educativos mais claros para alunos e responsáveis. No entanto, alguns usos da imagem me têm chamado a atenção por uma inadequação conceitual, como percebo na mesma reportagem, quando uma coordenadora da escola diz:
Por meio das imagens ? que são selecionadas e entregues aos pais em um CD no final de cada ano letivo ?, ficam documentados o fim do uso das fraldas e a conquista da autonomia de meninos e meninas na hora do lanche. Dica: todas as imagens devem ser datadas e acompanhadas de um comentário. Se não há o que falar é porque elas são desnecessárias (idem).
No seu comentário, a coordenadora estabelece um uso das imagens condicionado a comentários, pois, segundo ela, "se não há o que falar é porque elas são desnecessárias". Esta é uma postura que bate de frente com a frase-título, pois fica parecendo que as imagens só têm significado se algo for dito sobre elas. Não sei quem dissescreveu a frase que dá título a este artigo, mas tenho outra: Uma imagem vale uma imagem. Mil palavras valem mil palavras. O que me importa, tanto das imagens quanto das palavras, são os significados possíveis de suas articulações nos discursos.
Tenho estudado questões relacionadas a imagens e textos, e percebo que essa articulação entre linguagens não é tão simples e que precisa ser mais discutida. E essa é a intenção maior desse texto: discutir a articulação entre imagem e texto e negociações de sentidos a partir dela.

Imagens de Foucault 

Num determinado momento, nossos estudos, no grupo de pesquisa, nos levaram à leitura de Foucault. Sobre a parte 1 do Vigiar e punir, Suplício, André Bronw confessou sua perplexidade e angústia diante do texto. Seu depoimento, emocionado e veemente, tocou a todos, principalmente quando ele disse que, para se refazer do abalo que a leitura lhe havia causado, desenhou. As imagens que vemos são três dos seus seis desenhos sobre as mil palavras de Foucault sobre o suplício.
"... [em seguida], na dita carroça, na praça de Grève, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barriga das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre..." "[Demiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde de via ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras..."
"... e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos..."Em cada uma das imagens, o artista colocou como legenda o trecho do texto de Foucault que o provocou. Algumas discussões podem ser feitas a partir daí para tentar compreender a relação imagempictórica/imagemlingüística. A primeira delas diz respeito à escolha do trecho da escrita a ser traduzido para imagem. Mesmo que minhas perplexidade e angústia diante do texto se aproximassem das do André, os pontos de maior abalo, para mim, poderiam ser outros e não, necessariamente, esses que o abalaram. Portanto, mesmo que eu tivesse os seus dotes artísticos, meus desenhos seriam outros.
Uma segunda discussão é o próprio desenho. Inventemos que o mesmo movimento do André fosse feito, por exemplo, por Djanira. Com alguma certeza, a concepção estética da pintora brasileira seria bem diferente da concepção estética do André. Mas como isso é meio que dizer o óbvio, vou procurar explicitar esse óbvio: quando André nos presenteou com essas imagens, fui reler o Foucault a que ele se referiu, e o contato com as imagens e o impacto que elas me causaram influenciaram na minha leitura. Mas se, ao invés dos desenhos do André, o meu impacto acontecesse através de pinturas de Djanira, a influência seria a mesma?
Neste sentido, o impacto das imagens de um ou de outro artista não garante uma compreensão diferente do texto de Foucault, na medida em que a minha relação com a imagem independe da minha relação com o texto e vice-versa, embora essa interferência de um no outro possa acontecer. Mas, certamente, essa é uma possibilidade, não uma lei. Dessa forma, uma imagem vale o que ela é e não, necessariamente, o que ela pode produzir de texto. Para que essa relação entre imagem e texto efetivamente aconteça, ela tem que ser anunciada, explicitada, organizada para tal.
Las imágenes son superficies con significado. Normalmente señalan algo ubicado "afuera" en el espacio-tiempo, que han de hacer concebible en forma de abstracciones (reduciones de las cuatro dimensiones de espacio y tiempo a las dos de la supercifie). Esta capacidad específica de abstraer superfícies del espacio-tiempo y de reproyectarlas al espacio-tiempo la llamaremos "imaginación". Ella es indispensable para la generación y el deciframiento de imágenes; o, dicho de otro modo: para la capacidad de cifrar fenómenos en símbolos bidimensionales y de leer esos símbolos.
Quando aplicava no texto as imagens feitas por Brown, rodopiou por minha cabeça uma frase sobre imagem de Vilén Flusser, que retomo e completo para pensar um pouco na relação entre imagem e imaginação que ele estabelece. A imaginação, diz o autor, é indispensável para a geração e o deciframento de imagens. E como a grande maioria dos significados de imaginação se liga à fantasia, invenção, criação, posso inferir que Brown, ao escolher passagens de Foucault e as traduzir para o desenho, o fez pela sua imaginação. De outra forma, as palavras de Foucault, mais especificamente as passagens que ele escolheu, expressam, à sua maneira lingüística, imagens que, subjetivamente, atingiram a imaginação do desenhista que, a partir daí, criou as imagens despertadas em sua imaginação.
No entanto, se as imagens são mais antigas que a linguagem escrita, não se pode olvidar que a nossa sociedade ocidental de hoje é letrada, em que a escrita, no processo histórico de instituição da sua cultura e da sua ciência, é, digamos assim, a linguagem oficial. Nesta direção, é importante pensarmos com Arlindo Machado (2001, p. 121) quando, refletindo sobre a fotografia, diz que o surgimento de um novo meio sacode as crenças estabelecidas e obriga o retorno às origens para rever as bases a partir das quais a sociedade das mídias está edificada. Referindo a Vilén Flusser, Arlindo nos faz pensar que, hoje, o mundo pode não "estar" tão à base das letras em função da ocupação, pela imagem, de grande parte dos espaçostempos de comunicação humana. Mas a questão colocada por Flusser é fundamental, pois, ao mesmo tempo em que abre uma fenda em relação à linguagem hegemônica da ciência, a escrita, provoca uma reflexão de que existe uma briga que se dá no campo da hegemonia de poder, e não, necessariamente, no campo da hegemonia de linguagem, de comunicação.
Não raro, ouço dizer que a imagem é um excelente complemento para se entenderem os conhecimentos científicos. No entanto, a própria imagem é um conhecimento científico, e há quem diga, sem nenhuma parcimônia e necessidade de "provar cientificamente" sua afirmativa, que, no mundo de hoje, uma imagem vale mais do que mil palavras, pois, no mundo ocidental,

"vivemos em um mundo de imagens".

Essa é uma frase que expressa o lugar comum de muitos estudos sobre a importância da imagem em nosso espaçotempo contemporâneo. Se, hoje, os processos de comunicação de massa usam e abusam da imagem para vender coisas, em outros tempos menos marketinizados, a sua importância era diferente, mas não necessariamente menor que em nossos dias. As duas imagens que se seguem são de Caravaggio, ambas feitas em 1602.
A história dessas telas nos é contada por Gombrich (1999, p. 31-2) e, resumidamente, diz que Caravaggio, ao fazer outra tela (figura 2) em substituição a uma primeira recusada (figura 1) para atender às especificações da Igreja, revela uma relação ideológica, em que elementos de um ideário externo ao artista provocaram a existência de duas obras completamente diferentes para um mesmo fim.
Se essa não é uma situação corriqueira no mundo das artes, por analogia, é comum no espaçotempo escolar, ondequando passar conhecimentos curriculares, por menos vigorosos, honestos e sinceros que sejam, é, na maioria das vezes, mais importante que deixar circular os vigorosos, honestos e sinceros conhecimentos do cotidiano.
De qualquer maneira, podemos dizer que Caravaggio fez uma "correção" ao pintar a segunda tela para atender a critérios estabelecidos e dados a priori. Se o mote desta estrofe fosse, então, avaliação da aprendizagem escolar, as diferenças das imagens ficariam ainda mais evidentes, como nos ajuda a pensar Francesco Tonucci (1997, p. 83) pela figura ao lado.
Ao repararmos que a legenda apresenta a data de 1976, com os dizeres "a obrigação de corrigir", que Tonucci é um psicólogo italiano ? o que nos cria uma imagem de um espaçotempo bem específico, e ao refletirmos que a situação apresentada por ele pode cotidianamente acontecer em inúmeras escolas de diversas partes do mundo, percebemos que esse cartum nos traz elementos muito ricos para uma reflexão. Para mim, pretenso estudioso da avaliação escolar, ela traz muitos conhecimentos sobre as práticas que ocorrem em muitas das nossas escolas, o que tem sido, de certa forma, confirmado pelas narrativas de minhas alunasprofessoras.

Se não há o que falar é porque [as imagens] são desnecessárias

É preciso compreender o contexto específico em que esta frase foi dita e, ao mesmo tempo, perceber que ela emite um "conceito genérico e talvez generalizado" de uso da imagem que, minimamente, deve ser mexido, sacudido em sua "certeza". Será que uma imagem diz algo por si mesma?
Para mim, sim é a resposta óbvia. Por exemplo, a foto ao lado apresenta duas crianças bem pequenas sentadas num sofá azul. Ela, por si só, apresenta uma estrutura que traz significados para as mais variadas pessoas que para ela olharem, significados esses que podem depender, inclusive, da intencionalidade com que a fotografia está sendo olhada. Para apreciar esta imagem, não creio ser necessária nenhuma legenda ou outro tipo de texto referência.
Algo não muito diferente pode acontecer com um texto, pois, ao ler, cada pessoa poderá atribuir um valor ao que está escrito, independentemente de uma compreensão clara do que está escrito por se tratar, por exemplo, de um texto informativo, sem refúgios de subjetividade. Tomemos o texto a seguir sem nenhuma imagem: Crianças nascem com moléstia grave e precisam de transfusão de sangue do tipo A negativo.
A compreensão desta frase não me parece muito complicada, na medida em que apresenta uma informação bastante objetiva. Se, no entanto, associarmos essa frase à foto acima, poderemos conseguir, como resultado, diferentes compreensões de ambas? Não creio, embora possamos ter, e certamente teremos, atribuição de valores outros a partir dessa articulação. Será que o efeito dessa legenda ligada à foto das mãos será o mesmo que na relação com a foto acima? Também não creio, embora esta foto, mesmo sem nenhuma legenda, deve levar a compreensões muito distintas das compreensões da foto acima.
Pensando na frase da coordenadora ? se não há o que dizer é porque elas são desnecessárias ?, fico imaginando se a foto das minhas filhas, colocada num "boletim de avaliação", poderia estar-me dizendo alguma coisa sobre seus desenvolvimentos sem que uma legenda esclarecedora fosse necessária. Ao mesmo tempo, se a minha compreensão, como pai, poderia ser diferente da informação que a coordenadora quisesse me dar a respeito das meninas, na medida em que a foto não conseguisse expressar o que ela quis dizer e precisasse lançar mão de um texto. A presença do texto não quer dizer, necessariamente, que o "problema" esteja na foto, mas na sua escolha como significante do que se quer dizer ou mesmo se a imagem, no caso específico, é a linguagem mais apropriada para passar alguns tipos de informação. De repente, um filme, quem sabe...
Portanto, não acredito que uma imagem valha mais do que mil palavras, mas também não acredito que mil palavras bastem para esgotar os significados de uma imagem. Mas não sei se a minha crença vale como argumento científico.

A riqueza das articulações entre linguagens
 
Fica, para mim, que as tentativas de estabelecer formas puras de linguagem são fadadas ao fracasso, pois nossa cabeça não funciona de maneira pura. Fica uma preocupação como essa relação com a imagem em ação ? que é, também para mim, a imaginação ? pode ser compreendida a partir de pessoas que perderam a visão ou que, mais grave, na minha avaliação ainda sem fundamentos, nasceram cegas. Entendo, mais por sensação e crença do que por estimativa laboratorial, que imagens podem até dizer mais do que mil vezes mil palavras e que uma palavra pode dizer mais do que mil vezes mil uma imagem. O que tenho, hoje, de muito presente é que as articulações possíveis entre diferentes e variados tipos de linguagem podem ser uma maneira das mais gostosas de misturar ciência e ciências e outras coisas mais.

Referências bibliográficas
Flusser, V. (s/d): Una filosofía de la fotografía. Madird: Editorial Síntesis.
Gombrich, E. H. (1999): História da arte. São Paulo: LTC.
Machado, A. (2001): O quarto iconoclasto e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos.
Sgarbi, P. (2005). Avaliação pensadassentida a partir de uma epistemomagia do cotidiano. Rio de Janeiro: Uerj. (Tese de doutorado).
Tonucci, F. (1997): Com olhos de criança. Porto Alegre: Artes Médicas.

[ http://revistaescola.abril.com.br/edicoes/0194/aberto/mt_149199.shtml, acessado em 21-jul-2006.

Tenho utilizado o neologismo, como outros pesquisadores cotidianistas, para ampliar os significados que, na escrita moderna, não dão conta de uma nova forma de dizer conhecimento.

André Damasceno Bronw Duarte é desenhista de mão cheia, e fez sua dissertação estudando a questão do preconceito nas histórias em quadrinhos.

São alunas do curso de pedagogia das séries iniciais que têm como marca serem todas professoras do ensino fundamental.

Expressa na p. 1 deste artigo.

Minhas filhas Isabelle, 3anos, e Amélia, 1 ano. Muito lindas!
Paulo Sgarbi

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 174
Ano 17, Janeiro 2008

Autoria:

Paulo Sgarbi
Fac. de Educação da Univ. do Estado do Rio de Janeiro
Paulo Sgarbi
Fac. de Educação da Univ. do Estado do Rio de Janeiro

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