" De todos os pintores do século XX, António Cruz foi decerto aquele que melhor soube entender a alma da cidade." Bernardo Pinto Almeida
Quando Manoel de Oliveira nasce o cinema tem treze anos de idade. S.M. Eisenstein tem apenas dez. Manoel de Oliveira tem cinco anos quando Griffith realiza "Birth of a Nation". Em 1908, a montagem paralela está em gestação. Quando Oliveira nasce, Griffith dá a sua primeira volta à manivela. Quando Oliveira aprende as primeiras palavras, a sétima arte começa a descobrir a linguagem das imagens. A obra de Manoel de Oliveira é exemplar, pois oferece uma condensação da história do Cinema, das principais rupturas estéticas. De Lumière a Syberberg, via Vertov e Dreyer, ela traça a linha de evolução das formas cinematográficas. Desde "Douro, Faina Fluvial", entre a teoria dos intervalos, a montagem desarticulada, intelectual dos primitivos russos, e os valores-chave da modernidade (o plano sequência, a transparência, a imagem frontal, o respeito do texto), a obra de Manoel de Oliveira está aí para estabelecer uma continuidade, para provar o continuum. Em 1929, Manoel de Oliveira realiza "Douro...", canto do rio e retrato do Porto, da madrugada ao crepúsculo, sob a dupla influência de Walter Rutmann ("Berlim, Sinfonia de uma Cidade) e de Jean Vigo ("A Propos de Nice"), a quem renderá homenagem em 1984, quando realiza "A Propos de Vigo". A composição de "Douro..." obedece a um grande sentido geométrico. Passa no filme uma corrente futurista. Pontos, linhas e superfícies, luzes e sombras são aqui separadas do seu suporte material para um começo de existência autónoma, em proveito da sua aparência. Em "O Pintor e a Cidade", o Porto é filmado através dos olhos do pintor António Cruz, que o realizador segue passo a passo, quadro a quadro,. A unidade da cidade, a coerência do conjunto, já não reside na montagem orgânica das partes - como acontecia em "Douro..."-, efectua-se do exterior, no olhar transcendente do pintor, evidente metáfora do realizador e da sua arte. Em 1987, Manoel de Oliveira, numa entrevista dada a Yann Lardeau e Philippe Tancellin, dizia, a propósito de " O Pintor e a Cidade": "Em "O Pintor..." , filmo uma realidade em contraponto à visão poética de um pintor. Foi pouco antes da realização deste filme que aprendi a trabalhar com a cor. Foi o meu primeiro ensaio como operador. Toquei na cor pela primeira vez. Tinha pensado filmar noutro local, num sítio mais típico no Norte, mas conhecia melhor o Porto. Quanto ao pintor, foi escolhido apenas pela cor. Foi apenas um pretexto. Se tivesse abordado directamente a cidade, a coisa teria na mesma um ponto de vista cinematográfico.(...) Ao mesmo tempo sentia uma grande responsabilidade com a comparação da fotografia com os quadros... mas creio que não tive nenhuma intenção de estabelecer um paralelo, um prolongamento, ou mesmo de refazer o que tinha sido feito em pintura. Esqueci tudo durante a rodagem. Foi apenas na montagem que escolhi os quadros, o que evidentemente me forçou a fazer uma certa ligação(...) Há para mim uma diferença fundamental entre "O Pintor..:" e o "Douro...": este é um filme de montagem enquanto "O "Pintor..." é uma espécie de reacção contra a montagem. Quis prolongar a duração do plano por um tempo inabitual. Foi um dos primeiros filmes em que o tempo se alonga mais do que é aparentemente necessário. Tenho a sensação que os primeiros segundos deixam no espírito do espectador uma impressão, uma imagem... mas juntando a essa visão o tempo, a duração, ela transforma-se no espírito do espectador. O tempo é um elemento muito importante que joga de uma forma incontrolável sobre o espectador. "O Pintor e a Cidade" é a minha primeira tentativa desse género .(...) Antes, era o filme de montagem, depois é o filme sobre o tempo e a reflexão." Em 1956 o filme foi estreado no Festival de Veneza, onde começou a ser vaiado e... acabou aplaudido de pé (Oliveira pensa que o público tinha pensado que era mais um filme turístico do Estado Novo). Como dizia Sérgio C. Andrade em "O Tripeiro" de Dezembro deste ano, "é indispensável" que "O Pintor e a Cidade" e outros documentários de Manoel de Oliveira - e já agora, porque não "Aniki Bóbó"? - sejam editados em DVD para quem os ama. A propósito, nas comemorações do centenário do nascimento do Pintor António Cruz encontra-se, no Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto, até 11 de Janeiro de 2008, em exposição uma retrospectiva da sua obra. Para quem gosta desta cidade é imperdível.
Paulo Teixeira de Sousa
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