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Visões volvidas no tempo?

Queremos ser, no espaço de 3 anos e nas palavras do Primeiro Ministro, José Sócrates, um dos cinco países de proa na União Europeia no que se refere aos recursos informáticos e tecno-didácticos disponíveis na escola, na sala de aula. Mas alguém, no seu mais sensato bom senso, se oporá a isso? Não creio. No entanto, aquela velha máxima, velha porque aparentemente agoirenta, do "está-se a fazer a casa pelo telhado" talvez não seja de todo despropositada, neste caso, e valha a pena "separar o trigo do joio".
Nas palavras do Primeiro Ministro, esta "revolução" torna-se possível porque, agora como nunca antes, se alocou uma percentagem de verbas dos fundos europeus à educação nunca antes vista. Mas, em definitivo, convém tornar claro que este acréscimo de verbas alocadas à educação não se traduz, necessariamente, num acréscimo de investimentos no processo educativo, mas numa crença fortemente interiorizada de que, a partir do recurso a um conjunto de tecnologias novas e inovadoras, o próprio processo educativo se alteraria. Convenhamos que a receita não é nova; imponham-se novos recursos tecnológicos na crença de que, por força dos mesmos, a realidade educativa se alterará. E os professores, naturalmente, alterarão as suas práticas de trabalho e, em definitivo, os resultados serão a breve trecho completamente diferentes.
Em definitivo, o que faltava era perceber que o cerne do insucesso escolar tinha uma explicação, um "culpado"; o quadro negro. Extinga-se o quadro negro e tudo se tornará mais... colorido, mais agradável, mais educativo, quiçá.
As medidas são boas? desde que não reabilitem a ideia de que, "a partir de hoje, todas as escolas do 1º ciclo têm um acesso à banda larga" quando isso não passou da intenção de quem o pronunciou? mas, e renunciando a discutir outras questões, o que se trata é de saber se a presença na sala de aula de um quadro electrónico, de um servidor ligado à Internet, de uma impressora, de um projector vídeo alteram, imediata e inequivocamente os resultados escolares das crianças, adolescentes e jovens deste país. Vale a pena discutir se, sob o ponto de vista de um acréscimo da qualidade da aprendizagem, as questões estruturais se centram em aspectos tecnológicos ou se elas estão para além disso. E aí, pode talvez discutir-se se o investimento em educação, como nunca antes visto, estará adequadamente direccionado.
Podem-se produzir resultados rápidos, criando uma situação conjuntural em torno da urgência, por exemplo, da aquisição de mais qualificações. Cria-se uma conjuntura, criam-se os mecanismos tendentes a obrigar as pessoas a recorrerem a mais formação ? não há empregos, mas há mais formação, ainda por cima financiada ? e ela tem de produzir resultados rápidos, em suma, não há resquícios de qualquer alteração estrutural, mas há certamente uma alteração conjuntural. O exemplo da formação de adultos ? o famoso programa das "novas oportunidades", que só torna públicos os dados de adesão, não os dados de desistências, nem tão pouco os dados do processo, tão adulterados quanto a necessidade de produzir "número"? ilustra bem o quanto existe uma pressão não negligenciável sobre as estruturas de formação para, rapidamente, produzirem resultados.
Não se questionam as intenções? a necessidade de introduzir novas perspectivas na mão-de-obra, fazendo-a perceber a necessidade de se reequacionarem percursos formativos, percursos de aprendizagem, mas igualmente percursos de vida ? questiona-se apenas o modus faciendi adoptado, fazendo da história das pessoas tábua-rasa. Curiosamente, todo o processo de educação de adultos (actualmente expresso nos RVCC? Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências) assenta no pressuposto da valorização das histórias de vida, do legado das experiências pessoais como base para a assunção do "salto em frente", mas em seguida, confrontam-se as pessoas com as suas insuficiências e com a necessidade, incontornável, de adquirirem mais formação; aquilo que é majorado como um ganho rapidamente se converte numa insuficiência ou, dito de outra forma, um procedimento que parece eleger e relevar o significado das experiências, logo de seguida se transforma num modelo que mais não faz do que, sub-repticiamente, identificar as carências (adequando-lhe modelos de formação perfeitamente escolarizados, totalmente desconectados da realidade dos adultos). Admita-se este modelo como central para a educação/formação de adultos e questione-se, ao menos, a sua capacidade de alguma coisa transformar.
Porque parecemos ter fugido, afinal, da questão que aqui nos trouxe? Não fugimos realmente, porque aquilo que procuramos acentuar é um modo procedimental que se repete, muito ao estilo do "vês a árvore mas não vês a floresta". Não está em causa que, para as crianças, adolescentes e jovens o recurso a tecnologias mais contemporâneas se aproxime dos seus universos de construção de sentido, quanto mais não seja porque mais próximos de uma realidade que é aquela que eles (embora não todos) quotidianamente vivenciam. Admitindo que, a circunstância de nem todas as crianças, adolescentes e jovens disporem destes recursos no espaço privado não se constitui enquanto problema, a questão que se coloca remete para um outro nível, que é o de discutir se o sistema de ensino-aprendizagem se torna mais eficaz por causa da introdução destas novas tecnologias. Não estão em causa as ditas, mas a sua aplicabilidade e, sobretudo, esta ambição doentia de "estarmos no topo". Mas, porque raio é isto tão importante? Nunca, em momento algum se revelou importante para os governantes discutir o que isto acarreta, em termos de implicação, da própria formação da classe docente ou esta opção visa deliberadamente invisibilizar ainda mais o trabalho do docente e, sobretudo, a relevância da dimensão relacional nos processos de formação, particularmente de crianças, adolescentes e jovens? Nunca, em momento algum, se questionou, o quanto, a título de exemplo, a ponta poderosa (vulgo, "power point") não traduz necessariamente um acréscimo de saber (mais ainda, de saber-fazer em termos pedagógicos), e traduz sobretudo, tantas vezes, um subterfúgio imagético para dizer aquilo que não se sabe dizer conteudisticamente? É impróprio dizer que a partilha do saber, equacionada segundo a lógica dominante das novas tecnologias, quando esta valência não é adequadamente preparada e formada, particularmente para crianças, adolescentes e jovens, se pode converter na essência, preterindo a própria essência do saber? Que, revertendo a própria relação dentro da sala de aula (porque é uma linguagem tão familiar às crianças, adolescentes e jovens e não necessariamente aos professores), não pode ser erguida como solução sem prever, atempadamente, a própria formação dos professores? Que, em definitivo, esta solução não pode fazer tábua-rasa das crianças que não têm qualquer acesso, em termos da vida privada, às novas tecnologias, sob pena de acentuar ainda mais as diferenças de acesso que estas têm relativamente às demais?
Vê-se, de facto, a árvore, mas não se enxerga a floresta. E não se vê a população docente, e muito menos se vê ainda a população discente. Se as novas tecnologias parecem incontornáveis, pode-se sempre contestar a sua imprescindibilidade quando se tem a consciência que, face ao actual estado de coisas, mais do que acentuar a performance (indizível), elas parecem vir acentuar a diferenciação (visível).
Nesse sentido, elas estão próximas, em termos de estrutura racional, do programa "novas oportunidades"; percepciona-se com clareza a intenção, mas não se percebem os modos de a accionar. E percebe-se sobretudo uma imposição do topo para a base, segundo o princípio de nunca auscultar as bases; a determinação é a correcta, "ajustem-se". Já vimos o filme com as escolas do 1º ciclo? legisla-se e, se as escolas "não correspondem", será sempre um problema das escolas? vamos vê-lo agora com os quadros digitais. É, em suma, uma "limpeza" sobre quaisquer outros problemas do quotidiano das escolas; não existem, não são relevantes, os quadros digitais são "a questão". Que bom quando os problemas se resolvem assim! Todas as diatribes passarão a um estado secundário, perderão essência face à importância, incontornável dos quadros digitais.
Da mesma forma que o programa "novas oportunidades" está aí para ver e vencer, os quadros digitais vieram para revolucionar o nosso sistema de ensino (convirá acrescentar que, acompanhados da tão desejada, mas encapotada videovigilância e dos cartões magnéticos que, magicamente, fazem desaparecer o dinheiro).

Henrique Vaz


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 174
Ano 17, Janeiro 2008

Autoria:

Henrique Vaz
Assistente da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Henrique Vaz
Assistente da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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