Os inomináveis segredos dos meus outros eus
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Como Mário de Sá-Carneiro devo reconhecer que eu não sou eu nem sou o outro, mas qualquer coisa de intermédio, por exemplo um "pilar da ponte de tédio", entre mim e o Outro. E que outro? Na última das crónicas da minha morte, deste ano de 2007, prestes a ressuscitar, de novo, para a vida, seria simpático da minha parte nomear todos os Outros, como, por exemplo, o meu pai, que me deixou um livro de versos ? o livro do meu pai. Todos? Impossível! E os Outros dos outros? Seriam inomináveis? Fernando Gusmão, que me escolheu para soldado morto na versão de "O Asno" (de José Ruibal) levada à cena no Teatro dos Estudantes de Coimbra, tal como Júlio Castronuovo me escolhera para o papel do soldado Woyzeck, dizia que um dos meus Outros era legado do escritor Joaquim Namorado. Com Fernando Gusmão, que me apresentou o escritor José Cardoso Pires, aprendi que, em sede de negociação, devemos colocar as nossas exigências com firmeza. Eu que chegara a Coimbra desejoso de absorver o panteísmo de Antero ("um pouco mais de Sol ? e fora brasa", diria o já citado Mário de Sá-Carneiro) vi-me, subitamente, em Lisboa, nesse longínquo ano de 1973, a "impor" à Fundação Calouste Gulbenkian uma nova tabela de ordenados para encenadores subsidiados ? de quinze mil para dezoito mil escudos mensais, dezoito contos, "uma fortuna" pensava eu sem pensar na precariedade e sazonalidade da função. Como poderia esquecer o João Seiça Neves em inominável outro? E o Joca? E a Guidinha, cujo nome bordaram num guardanapo de papel que eu passeei ao peito em certas noites de bebedeira e paixão? Cheguei a escrever que o meu tempo tinha nomes de mulheres. E tinha. Certa noite fui parar ao hospital com queimaduras graves numa mão, desarmado por um ferro em brasa, feito florete de espadachim, que certa menina usou para se livrar, perdão, lembrar de mim. Ceguinho seja eu se, em matéria de amores e desamores, alguma vez eu enxerguei um palmo à frente dos olhos. Depois nasceram o Pedro e o João, filhos que não vi crescer de perto, e a seguir passam-me pela memória mais nomes de mulheres, que jamais poderão ser inomináveis, mesmo que aqui fiquem por nomear, como nos cuidados da clandestinidade. Também fui Jorge Castilho, que foi quem me trouxe para esta aventura dos jornais, e fui o jornalista Artur Queiroz, Fausto Bordalo Dias, (pela memória das minhas mais belas canções de Abril), os encenadores Adolfo Gutkin e António Augusto Barros e, mais recentemente, já depois do nascimento do Tiago e da Rita, a escultora Ana Efe e o meu irmão José Eduardo. Também fui os homens e as mulheres que entrevistei e o João Rita que aqui escreve, João por parte do primeiro casamento, Rita por parte do segundo. Segredos inomináveis.
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Ficha do Artigo
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Edição:
Ano 16, Dezembro 2007
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Autoria:
Jornalista do Jornal de Notícias
Jornalista do Jornal de Notícias
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