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A higiene
Comecei este ano como professora numa pequena escola no norte do país ? tão perto do Porto mas tão longe de Deus, como diria o poeta mexicano. Era visível logo ao primeiro olhar a carência e a ausência de conforto entre as crianças. As dificuldades eram grandes e, corria o ano de 2006/7, ainda havia crianças pequenas, e que pequeninas elas eram, que chegavam à escola cheirando a sopas de vinho.
Estar com aquelas crianças foi um desafio quotidiano e um processo de construção de outros horizontes. Conquista-se a confiança primeiro, instala-se o afecto depois, e desenha-se o percurso e aquisição dos saberes.
Entre todos aqueles alunos tornava-se visível a cabeleira arruivada e quase crespa de Vanessa. Brilhava como uma chama quando o sol lhe dava e o seu rosto arisco e vivo não se deixava esquecer facilmente. Também não passava despercebida durante as aulas, sempre de resposta pronta e atitude defensiva; não deixava passar nada e mesmo os rapazes lhe tinham respeito quando, nos espaços fora da sala, se esboçava alguma briga. E no entanto Vanessa era talvez a criança que, do ponto de vista material, era a mais desfavorecida do grupo.
Procurei investir na aproximação desta criança fugidia e isolada. Ou ela se afastava dos seus colegas ou ela os afastava ou as duas coisas. Foi importante e difícil encontrar um colega de mesa para ela, estabelecer diálogos cruzados em que ela participasse, incorporar as suas sugestões nos trabalhos que se faziam, levá-la a integrar o trabalho do grupo dos colegas?E pouco a pouco foi pertencendo ao colectivo.
Vanessa parecia a criança mais solitária mas a que revelava um traço de orgulho que impunha aos outros uma força oculta. Vanessa, remetida para o seu silêncio obstinado, ou as suas respostas por vezes bruscas e ácidas, mantinha os outros um pouco à distância. Mas um dia desequilibraram-se os espaços de força de Vanessa e eu perdi muito da confiança conquistada e das relações tecidas, quando uma epidemia de pedicolose invadiu a sala.
Foram de imediato contactados os pais dos alunos para tratarem do problema de higiene capilar dos seus filhos. O problema pareceu diminuir mas tempos depois recomeçou e ainda mais forte. A coordenadora comunicou à A.R.S.
E um dia o delegado de saúde chegou à sala.
A porta abriu-se e entrou, de pasta médica na mão, muito direito e rosto fechado. As crianças encolheram-se e um silêncio substituiu de imediato o sussurrar agitado da turma. No ar estava alguma expectativa e um pequeno receio perante aquela figura institucional e desconhecida que lhes parecia enorme. Não se apresentou, não os olhou nos olhos, instituiu-se.
? Ora vamos lá ver essas cabeças ? disse o doutor, enquanto pousava a pasta, a abria e calçava as suas luvas de médico.
Com uma grande eficácia percorreu as cabeças de cada um dos alunos, separando os cabelos, e sentenciando: - este tem, este aqui ainda não.
Até que chegou à Vanessa. Ela baixou os olhos, o rosto incendiado deixava perceber a vergonha e a humilhação. A cabeça inclinada para a frente, o queixo encostado ao peito, os olhos tremendo para não deixar as lágrimas correrem, e o corpo rígido como uma estátua, deixava que o médico lhe mexesse na cabeça. Aquele separou-lhe um pouco a sua vasta cabeleira ruiva e logo parou.
? Está claro, está identificada a origem: está aqui o foco de toda a infestação. Há quanto tempo tomaste banho? Perguntou segurando-lhe o queixo.
? Ontem?balbuciou de voz sumida Vanessa.
? E não sabes que tens que tomar todos dias? Está claro. Esta menina tem que ir para casa e tratar-se.
O médico retirou as suas luvas que deitou fora, e fechou a sua pasta. Saiu com um bom-dia rápido e seco.
Ficou um silêncio de alguns segundos. Depois o colega de mesa da Vanessa levantou-se e pegou nos seus livros e mudou de lugar. Os outros começaram a rir e a palavra piolhosa corria como uma onda pela sala.
Vanessa levantou-se, pegou nos seus livros e sem dizer nada saiu, de queixo erguido e olhos brilhantes da sala.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 169
Ano 16, Julho 2007

Autoria:

Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto
Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto

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