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Tu e eu e depois, todos nós
Era Verão. Eram as férias. Éramos os estudantes, supostos a descansar durante um período de três meses: dois para fazer trabalho de campo entre os campesinos da Cordilheira dos Andes, para alfabetizar; outro, para preparar as matérias dos exames não aprovadas no período lectivo, antes das de férias. Eram raros os que aprovavam. Muitos os que alfabetizavam. A dormir em tendas de campanha no chão, a comer o fornecido pela população rural, a receber ajuda da Cáritas, Amnistia, ou Governo, ou, ainda das nossas famílias. Assim íamos construindo escolas e abrindo caminhos, enquanto retirávamos ideias das actividades observadas e as devolvíamos definidas, desenvolvidas, com palavras e ideias novas. Não era apenas ensinar a ler e escrever, mas sim, a entender, como Paulo Freire nos ensinara. Tínhamos entre 18 e 22 anos. Éramos arquitectos, antropólogos, sociólogos, enfermeiros, professores, médicos, etc., ou ainda o seríamos um dia.
As nossas famílias pensavam que éramos doidos; irmos no frio da noite e no calor do dia; sermos amigos de pessoas que não conseguiam entender as nossas formas de vida. Perfumados e penteados durante o ano, de "jeans" e cobertos de pó durante o Verão. Os mais sedutores, pensavam que era uma época para namorar; mas, nem tempo havia: trabalhava-se no duro, com textos ao entardecer; com ferramentas para semear e a tomar conta do gado, desde o amanhecer até a hora da "choca", altura em que começava a alfabetização, quer dos analfabetos, quer a nossa: mal conhecíamos as formas de vida rural ou das aldeias. Mas, com persistência e ao longo do tempo, a prática da alfabetização fez de nós pessoas revolucionárias, irrequietas, na procura da democracia. Em grupo, começamos a entender o populismo, a igualdade, as ideias de Babeuff do Século XVIII, esse que mudou a vida económica na passagem da servidão à procura de igualdade, fraternidade e liberdade. Três princípios desconhecidos até ao dia de hoje em muitos lugares do mundo, especialmente entre o operariado europeu, a vida rural e os lugares em que trabalhámos na América Latina durante a nossa curta juventude, que acabava sempre com o começo de uma nova família.
E foi assim que a vi: éramos 299 e entre nós vinha uma convidada que queria entender a vida fora da Europa, das cidades e das salas de vida facilitada pelas viagens, as Embaixadas, a música clássica. Mal a vi, virei-me para o amigo que me tinha pedido para a convidar, eu era o líder daquela vida que combinava estudos e aprendizagem alfabetizada, e sem hesitar um segundo, afirmei: esta vai ser a minha mulher. E foi. Criámos filhos, tratámos de netos e aprendemos a ser pais. Como a alfabetizar na Cordilheira dos Andes. É a saber conviver o convívio entre nós, enquanto passava o tempo.
Até que o tempo passou, toda a gente cresceu e cada um de nós começou a entender a vida para ensinar novas crianças que apareciam. O fim do estrelado aconteceu, passou a ser a vida autónoma e a imitação da vida, aprendida na nossa própria alfabetização. O que aos vinte anos ensinávamos, hoje, aos 60, devemos aceitar como comportamento que deve ser corrigido, fruto da nova era. Por isso, Tu, Eu e a seguir todos nós, em solidariedade, damos as mãos, especialmente no Natal.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 162
Ano 15, Dezembro 2006

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Ana Paula Vieira da Silva

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Ana Paula Vieira da Silva

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