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Como o cinema era belo
Para a minha mãe

Com este título, está a decorrer um ciclo de cinema em Lisboa -claro- na Fundação Gulbenkian, organizado por João Bénard da Costa. No respectivo catálogo, belíssimo por sinal, um dos textos conta uma sessão de cinema em 17 de Novembro de 1973. O filme "Roma Cidade Aberta", de Roberto Rosselini, com o próprio Rosselini, Henri Langlois ? director da Cinemateca francesa - Bénard da Costa como personagens e, como veremos, muitos figurantes. Mas a palavra a Bénard da Costa:
"...Como prometido, Langlois conseguiu Rosselini. A 17 de Novembro de 1973, estavam os dois em Lisboa, para o que foi a mais inesquecível sessão de cinema da minha vida e vão por mim tenho visto muitas.
O ambiente mediático à época era fervorosamente cinéfilo, Cinéfilo era o nome da revista de espectáculos que recentíssima novidade, "toda a gente lia". O dito Cinéfilo (que deu a notícia em primeira mão) embandeirou em arco. A restante imprensa , a televisão seguiram-no. Quando a bilheteira abriu, a "bicha" a volta à Praça de Espanha e, ao segundo dia, todas as sessões (e eram 29, 21 das quais no Grande Auditório) estavam esgotadas.
Mas, poucos dias antes, um sobressalto inesperado. Telefonou-me o Dr. Caetano de Carvalho, à época Director Geral da Cultura Popular e Espectáculos, de quem dependiam os serviços de censura (Moreira Baptista já passara para o Ministério do Interior) a perguntar-me, com doces modos, como é que íamos apresentar "Roma, Città Aperta" se filme estava proibido.
Eu tinha visto "Roma Città Aperta" quando tinha 12 anos, em Outubro de 1947, no Palácio, ali no Arco do Cego, onde depois foi o Avis e hoje é não sei bem o quê. Lembrava-me como se fosse ontem da impressão que o filme me fez e deter chorado como uma madalena. A autorização fora dada, como a muitos filmes resistentes desses anos ("Roma..." é de 45) no rescaldo da guerra, quando o regime queria mostrar uma certa abertura. O que eu não sabia - e por isso o programara com tanto à vontade-é que, findo o prazo de exploração dessa cópia, quando o distribuidor pediu a reposição, a censura, recordada de alguns dissabores com sessões de "Roma..." e (anos 50 e 60) indiferente ao que se pensasse ou dissesse além-Pirinéus, proibiu-a
E agora, perguntei-me eu então.
Rosselini e Langlois já estavam confirmados, a sessão esgotada, como explicar-lhes a eles e explicar ao público que "Roma..." não podia passar? Calculo que foi pensando em tal escandaleira e com a garantia gulbenkiana que o filme só passava uma vez e na versão original italiana, sem legendas (bons tempos, bons tempos...) que acabou por vir uma autorização especial. O que eu não esperava- já o contei muitas vezes- é que, à entrada da sessão, o próprio Director Geral me viesse felicitar pela boa ideia que eu tinha de trazer "Roma, Città Aperta", "um filme que eu há tanto tempo queria ver"(sic). Ainda hoje não sei se estava a ser sincero. A alma humana é um abismo.
Sala hiper à cunha, ambiente de alta tensão. A maior parte da assistência devia ter nascido muito depois do filme. Mas também havia altos dignitários de regime, ministros, secretários de estado, etc.
Rosselini foi acolhido em delírio. Acerta altura, disse que tinha um conselho para dar aos jovens, mas, com a sua lendária lapidez romana, percebeu que não era de conselhos que a juventude dos anos 70- tão contestatária- estava á espera. E logo emendou a mão: "Conselhos não. É sempre estúpido dar conselhos". Tremenda ovação. Tinha a sala na mão.
Depois saiu do Auditório, porque nunca revia filmes dele e veio conversar cá para fora com Langlois. Nas minhas idas e vindas para a cabine, lembro-me de os ouvir ressonando tranquilamente.
Mas, quando o filme acabou, a sala levantou-se em peso para a maior ovação a que jamais assisti em sessões de cinema. Dez minutos, tudo aos "bravos" e não pensem que exagero. No palco, Rosselini com "uma emoção que não disfarçava mas também não exibia", como no dia seguinte escreveu no "Expresso" Helena Vaz da Silva, não conseguia abrir a boca.
E, a páginas tantas, começaram a ouvir distintamente (em Novembro de 73) slogans como "Abaixo o fascismo" ou "Viva a Liberdade".
Ministros e altas entidades escapavam-se pela direita baixa, muitos deles alvos de dichotes. Coube-me a ingrata tarefa de levar Rosselini dali para fora, antes que os ânimos aquecessem a ponto de pôr em risco o resto do Ciclo em causa. À saída, as pessoas abraçavam-se. Muitos choravam.
(...) Rosselini não recuperava do espanto. Em 45, nos tempos épicos da Libertação e do fim da guerra, ele lembrava-se de acolhimentos semelhantes. Mas quase 30 anos depois, uma reacção daquelas? Langlois comentava que as coisas em Portugal iam mudar, não tardava. Habituado a ouvir essa frase, pelo menos há quinze anos, não lhe dei crédito.
(...) Quando, meses depois, veio o 25 de Abril, lembrei-me da frase de Langlois e perguntei-lhe (entretanto víramo-nos muito e muito estivera com ele) o que o levara a dizer tal profecia. A berraria? Langlois respondeu-me que não. Isso de gritos, nunca o impressionara. No que reparara fora na cara das pessoas. Das "boas" e das "más". A cara da gente do poder já exprimia a certeza do fim dele. A cara dos rebeldes a certeza da vitória. "Sabe"- acrescentou- "o cinema mudo ensinou-me a ver muita coisa". Le cinema muet, le cinema muet"
Confessem?quanto não dariam para ter lá estado?

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 162
Ano 15, Dezembro 2006

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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