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A propósito de nada

 ?Dói tanto??. Repetiu Ernesto enquanto empalidecia, a cabeça recostada no meu braço. E repetiu como se pedisse desculpa pelo incómodo, num sopro fraco: ?Dói tanto?. E podíamos ter ambos ali morrido, mas ainda hoje ecoa no meu espírito inquieto a voz infantil de um corpo adulto dobrado sobre o flanco encharcado de vermelho sangue, algures onde a bala que era minha, e ele reclamou com a sua maior coragem, se havia alojado. Para gravar no epitáfio da dor: ?Eu não tenho uma mãe com quem sonhar?. Tê-la-á conhecido pela manhã branda em que a Natureza no calor do regaço lhe devolveu a cor às feições e o espanto aos olhos reabertos, tê-la-á admirado na estatura de todas as provisões necessárias à sobrevivência da sua pessoa e dos sobreviventes dos pesadelos a que o colo põe cobro, tê-la-á respeitado na tempestade dos avisos mais acesos e na beleza tranquila em que as paisagens tomam o nome aos sorrisos e as brisas afagam os cabelos no desvelo de mãos dedicadas, tê-la-á beijado bebendo das fontes em cacho como quem sacia a alma lavando as entranhas de pecados pretéritos. Nesse reencontro a que os meus louvores e as minhas saudades não atingem, deixadas para trás as palavras sagradas que foram o elo singular de um acto de bravura. ?Eu não tenho uma mãe com quem sonhar?.
E foi só nossa, aquela despedida. Como são únicos os brados que ecoam a cada instante de tragédia na vulgaridade do nosso olhar inumano e dos comentários que ninguém pede. E dói tanto a cada herói de guerras que não são suas para lhes cobrirem o cadáver de escárnio e os nomes com as letras das causas alheias. Legiões inteiras vão clamando no derradeiro momento com os lábios imperceptíveis: ?Eu não tenho uma mãe com quem sonhar?. E cai a noite enquanto as mães se vestem de luto e uma chuva ácida de poeiras letais se vertem como o pranto a que a revolta solta os lamentos. É o soldado que morre com a mãe na sua dor, sem que possam sonhar.
Quantos estertores serão necessários para que vejamos que esse estertor também é o nosso? Quantas preces para calar o grito abafado, o clamor de quem perde o sonho connosco? Quando se dissipa esta penumbra das forças que nos fazem apunhalar o céu na crueza daquele delírio que nos preenche páginas e filmes sem que ouçamos ou se dediquem legendas: ?Eu não tenho uma mãe com quem sonhar??
Como freio para a ignomínia, gravei as palavras do meu companheiro. Do que tem uma mãe como o inimigo também tem, que eleva o olhar a um mesmo céu, e prostrado partilha a condição de não compreender por que perece, todos eles privados da resposta à pergunta última posta em uníssono, dessa satisfação de uma dúvida para que não há explicação. Talvez apenas a de que odiamos pelo simples facto de não sabermos que o momento vem, e com ele a confissão de que só nesse preciso e incerto passo para a paz compreendemos que não estamos sós a pedir por uma mãe com quem sonhar.
O tributo que presto a quantos por nós dão a vida, sem que suspeitemos que a nossa paz nasce das guerras que travam bem mais perto do que se possa suspeitar, é o de lançar ao vento o lamento de Ernesto que com todos os soldados verte uma lágrima de despedida na frase que o faz cúmplice de quantos a quem possa ter roubado uma mãe.
E o de pedir que se possa em liberdade afirmar: ?Nós ainda temos uma mãe com quem sonhar?.          


  
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Edição:

N.º 158
Ano 15, Julho 2006

Autoria:

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

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