Página  >  Edições  >  N.º 152  >  Quando o divórcio acontece*

Quando o divórcio acontece*

O divórcio é um acontecimento familiar que, como (quase) tudo o que acontece na família, não é vivenciado de modo idêntico por todas as crianças dessa mesma família. A maior ou menor perturbação que causa em cada um dos filhos é função de inúmeros factores individuais, como sejam: o temperamento, a personalidade, o nível de desenvolvimento e a idade, a ordem de nascimento, a relação que cada um deles tem com cada um dos progenitores?
Relativamente à idade/nível de desenvolvimento ? e não incorrendo na tentação e no risco de erigir regras rígidas e universais, impróprias em qualquer das matérias humanas ? podemos dizer que a compreensão do divórcio dos pais segue a norma de entendimento dos outros acontecimentos de vida:

Antes dos dois/três anos ? a criança muito pequena, por estar ainda muito dependente e pouco separada da mãe, não terá uma percepção total de si e dos outros, o que a impede de compreender os vínculos existentes entre as pessoas e entre os pais, em particular; e muito menos, de compreender a ruptura desses laços.
Não sofrerá muito, e directamente, com o divórcio dos pais, mas, mais tarde, pode sofrer com essa ruptura acontecida precocemente na sua vida: se ficar só com a mãe e se o pai, ausente fisicamente, se tornar também ausente psicologicamente ? deixando de exercer o papel separador na díade mãe-filho que, a manter-se, pode dificultar ou mesmo impossibilitar a necessária separação-individuação da criança.
Dos dois/três aos cinco/seis anos ? como a criança, nesta fase de desenvolvimento, está muito centralizada na compreensão de si e dos adultos significativos que a rodeiam, a separação dos pais pode desarrumar-lhe algumas arquitecturas que está a tentar estabelecer sobre o lugar dela ? e o dos outros ? na genealogia familiar. E como a passagem de uma relação a dois (entre ela e a mãe) para três (mãe-pai e ela) não se faz sem algumas perdas e rancores associados, a criança pode, compreensivelmente, culpar-se: o pai vai sair de casa porque eu, algumas vezes, terei desejado que a mãe fosse só minha? O raciocínio rudimentar e egocêntrico desta fase faz o resto: a auto-atribuição por tudo o que acontece à sua volta.
Depois dos seis/sete anos ? quanto mais crescida for a criança, melhor e mais realisticamente entenderá as razões para a separação dos pais. Embora na adolescência, num período de forte recrudescimento dos desejos incestuosos em relação ao pai do sexo oposto, a saída de um dos pais de casa pode materializar o cenário dessa possibilidade. E depois, algumas mães ? e são, maioritariamente elas que ficam com os filhos no pós-divórcio ?, não tomam o rapaz mais velho como uma espécie de substituto do marido, entregando-lhe a tarefa da autoridade paternal?
E na adolescência também os receios homofílicos. Numa idade em que a identidade sexual deve ser definitivamente conquistada, a saída de casa de um dos pais poderá acentuar, nalguns casos, a deterioração da imagem sexual do pai do mesmo sexo, dificultando a identificação com ele. Acentuar, sublinhamos, porque provavelmente o caminho da homossexualidade venha a ser traçado desde fases anteriores e muito mais precoces do desenvolvimento?Independentemente da idade, a história pessoal de cada um dos irmãos ? que se foi consubstanciando na sua personalidade, em geral, na sua maior ou menor vulnerabilidade ? é um factor determinante na forma como cada um deles lida com este evento. Parece que muitas vezes o divórcio dos pais ? ou qualquer outro acontecimento relevante, familiar ou não ? não faz mais do que salientar as brechas já delineadas em etapas mais precoces. Até porque é dificilmente crível que um resultado tenha uma única causa. Que, pelo contrário, haja sempre a contribuição de múltiplos factores, mesmo que nem sempre sejam perceptíveis as suas ligações com o efeito actual e, aparentemente, este seja desencadeado por apenas um deles.
 Como é compreensível, o facto de se ser o mais velho da fratria pode também ser um óbice. Como frequentemente o progenitor que fica com os filhos ? geralmente a mãe ? está momentaneamente deprimido e a sentir-se abandonado, é natural que se socorra, mesmo que inconscientemente do apoio do filho mais velho, seja rapaz ou rapariga, para fazer face à reorganização da família e ao cuidar dos filhos mais novos. Num momento em que esta criança ? como aliás toda a restante fratria ? precisava de um atenção extra pela perda que está também a vivenciar, o adulto que ficou com a guarda dos descendentes pode estar pouco disponível para esse esforço acrescido.
Se o pai que sai de casa tinha uma relação privilegiada com um dos filhos, ou um deles pensava ter esse lugar de destaque no coração desse pai, essa criança pode, mais do que os outros irmãos, sentir um impacto maior com a ruptura da relação conjugal.
Em suma: dificilmente os irmãos vivenciam da mesma maneira este acontecimento familiar, o que significa que para uns será mais perturbador do que para os outros.

* este artigo é um extracto, ligeiramente alterado, do livro da autora recentemente publicado: Ser único ou ser  irmão, Oficina do Livro, 2005.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 152
Ano 15, Janeiro 2006

Autoria:

Otília Monteiro Fernandes
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro, Chaves
Otília Monteiro Fernandes
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro, Chaves

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo