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O narcisismo é um pilar do capitalismo pós-moderno
  1. Ao contrário do que muitos acreditam, a apatia pós-moderna não se revela pela ausência de socialização. O homem e a mulher pós-modernos estão sujeitos ao campo vertiginoso dos possíveis. É uma nova forma de socialização. Uma socialização flexível, volátil e económica, necessária ao capitalismo pós-moderno enquanto sistema acelerado, mutável e sistemático. É a mudança permanente de referências que gera a apatia. É a abundância de estímulos e não a sua ausência que gera a incapacidade de planear o modo de vida. A nova apatia leva a que tudo se passe ao nível da experiência.
  2. Note-se o que se passa nos diferentes modos de vida. Ninguém se refere a uma actividade duradoura. Todos trabalham em projectos, experiências, das quais não se espera que resultem acções duradouras. Tudo começa e acaba no projecto, na experiência. O resultado destas não é objectivado, quantificado, descrito. Tudo se resume à adjectivação. O projecto «foi muito giro». A experiência «muito interessante». A vida não se vive, consome-se.
  3. «O narcisismo tornou-se um dos temas centrais da cultura americana» (1). Não só o individualismo extremo, mas a centração sobre si mesmo distraído dos outros, é um fenómeno em desenvolvimento desde os anos setenta. Para o homem e a mulher pós-modernos nada existe fora das suas pessoas, do seu espírito e do seu corpo. O narcisismo é um elemento inerente ao novo capitalismo. «O narcisismo designa [agora] a  emergência de um perfil inédito do indivíduo nas suas relações consigo próprio e com o seu corpo, com outrém, com o mundo e com o tempo, no momento em que o capitalismo autoritário dá a vez a um capitalismo hedonista e permissivo» (2).
  4. O desinteresse para com as instituições está marcado pelo narcisismo pós-moderno. No mundo ocidental a despolitização e a dessindicalização ganham proporções não atingidas nos dois últimos séculos. A esperança revolucionária morreu. A contestação seja estudantil seja dos assalariados, globalmente, desapareceu. Resta, de forma ténue, a dos que dependem das estruturas do Estado. De um Estado em destruição permanente. A noção de contracultura é agora uma noção estranha, desconhecida, em completo desuso. A cultura dominante, volátil, produzida para consumo imediato, domina de forma totalitária. Raras são as causas capazes de galvanizarem seja quem for a prazo. Restam alguns entusiasmos na condição de terem duração efémera.
  5. «A pluralidade e a desagregação dos impulsos, a falta de sistematização entre eles, leva a uma vontade fraca; a coordenação dos impulsos sob o predomínio de um deles leva a uma vontade forte» (3). O papel atribuído à comunicação social, pelo poder dominante, é o de promover a desagregação dos impulsos, substituindo a informação pela espuma informativa, dando relevo ao efémero, ao sensacional, bombardeando os indivíduos com fait divers sepultando, desse modo, os factos relevantes da vida.
  6. As comunidades são agora desertos sociais e culturais. «Cada macaco no seu galho», «cada coelho na sua toca», sob a ventania de uma imensa solidão.  A República ? a Praça da República ? está desvitalizada, é um elemento estranho à sociedade de mercado, ao mundo dos negócios, do produz, compra e vende que domina, de forma totalitária, a sociedade ocidental. As grandes questões filosóficas, económicas, sociais, culturais ou políticas suscitam mais ou menos o mesmo entusiasmo, a mesma curiosidade que um fait divers.
  7. A sociedade narcísica também se caracteriza pela perda de sentido histórico. Viver no presente, apenas no presente e não em função do passado e do futuro é uma característica do novo capitalismo. O neoliberalismo faz apelos permanentes à reforma perdendo, e negando, toda a perspectiva histórica. Contra tudo e contra todos contam os interesses dominantes do presente. Não há gente, princípios, ideologias, ideias, há negócios.
  8. A sociedade de consumo terraplenou a vida. Todos os cumes foram desbastados pouco a pouco, arrasados pela vasta operação de neutralização e banalização sociais. O capitalismo pós-moderno não pode permitir que o ser humano se ocupe ou se distraia com outra coisa que não seja o consumo dos bens de curta duração que produz. O homem e a mulher pós-modernos estão inteiramente ao serviço do consumo e do lucro que dele resulta.
  9. Desta vaga de apatia, só a vida privada parece sair ainda vitoriosa. Zelar pelo direito ao consumo das suas crianças. Zelar de forma obcecada pela saúde e pela conservação do corpo. Defender a situação material. Rodear-se de objectos. Perder os complexos. Aprender a comportar-se como deve ser. Emagrecer. Vestir-se. Ver as imagens televisivas. Esperar as férias e a reforma. Viver sem ideal e sem fins transcendentes é a vida possível. «É a vida». 

- LASCH, Chr; The Culture of narcissism, Nova Yorque, Warner Books, 1979, p. 61)
- LIPOVETSKY, Gilles; A Era do Vazio, Relógio D?água, p. 48
- NIETSCHE; Le Nihilisme européen, UGE, colecção 10/18, p. 207


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 150
Ano 14, Novembro 2005

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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