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?A situação é má, mas recuso uma visão catastrofista?

Jaime Carvalho da Silva desmistifica, em entrevista à PÁGINA, o ?descalabro? dos exames nacionais de matemática

Jaime Carvalho e Silva é professor associado do Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra e vice-presidente da Comissão Nacional de Matemática.
Do seu extenso currículo, destaque para a função de coordenador da equipa técnica de elaboração dos programas de matemática aplicada dos cursos de educação e formação e dos programas de matemática do ensino artístico especializado, exercendo também esta função, desde 2003, relativamente aos programas de matemática do ensino secundário recorrente e do ensino profissional.
Integrou o Grupo de Trabalho para o Ensino da Matemática, coordenado por João Pedro da Ponte, que elaborou uma apreciação geral dos problemas existentes no ensino da matemática, os recursos e as potencialidades disponíveis para os enfrentar. Foi membro da equipa de Técnica de Acompanhamento dos Programas de Matemática do Ensino Secundário, entre 1996 e 2000, e membro da equipa de Técnica de Ajustamento dos Programas de Matemática do Ensino Secundário em 1995.
Tem dezenas de livros e artigos publicados e é colaborador de A Página da Educação desde o início deste ano. Participa regularmente na organização de encontros e seminários nacionais e internacionais dedicados tanto ao ensino da matemática como à investigação especializada nesta área científica.
Nesta entrevista, Jaime Carvalho faz uma análise geral do ensino da matemática em Portugal e aponta aqueles que considera serem os caminhos adequados para que esta disciplina deixe de ser a ?mal amada? do sistema educativo português.

Como se explica que os alunos portugueses tenham uma relação tão conflituosa com a matemática?

Eu não diria que existe uma relação conflituosa. Talvez seja, de certa forma, mais mediática, porque a matemática aparece, a par com a língua portuguesa, de uma forma mais visível enquanto referencial de avaliação das aprendizagens escolares. Poderá, isso sim, existir uma relação conflituosa com a estrutura escolar e com a forma como os conhecimentos são apresentados e avaliados na escola. É necessário reconhecer que os resultados não são aqueles que se desejariam e que a situação é má, mas recuso uma visão catastrofista.

Dois terços dos alunos do nono ano reprovaram a esta disciplina e a média dos resultados dos exames de 12º ano baixou em relação ao ano passado?

Eu considero que não se pode formular a questão nesses termos nem medir os resultados dessa maneira, porque não é totalmente verdade que 70% dos alunos tenha reprovado a matemática no 9º ano, já que o exame final é considerado, e bem, apenas uma parte da avaliação. É verdade que temos uma relação difícil com os exames, mas porque razão se valoriza mais essa parcela de 25, 30 ou 40%?
Há países onde o exame do ensino secundário equivale à nota final, tal como acontece em França, com o Baccalauréat ? apesar de ter havido um ministro que tentou mudar essa situação por considerar que uma prova escrita era redutora. Em Espanha, por exemplo, não há exame do ensino secundário, mas para entrar na universidade os alunos têm de fazer uma prova que representa uma espécie de exame final. Eu acho que nesse aspecto temos um sistema razoavelmente equilibrado, em que a avaliação contínua e final têm, cada uma, o seu peso.
Além disso, a nota dos exames de matemática do 12º ano desceu uma média de 0,6 valores. Que significado tem esse decréscimo no conjunto absoluto de conhecimentos? São flutuações sem significado. É verdade que a média dos últimos anos é fraca, tem andado ao longo dos anos pelos 8 ou 9 valores, mas há cerca de quinze anos chegou a ser de três valores.
Porém, quando a média subiu, alguns comentadores da praça pública diziam que era impossível ela ter subido porque os alunos não conseguiriam, de um ano para outro, ficar a saber mais matemática. Esta reacção levou-me até a escrever uma carta para um jornal explicando que os alunos são diferentes de um ano para outro e que a análise não podia ser tão simplista. Porque razão se aceita, quase masoquisticamente, que é justo as médias baixarem mas não subirem?
O que não me parece justo afirmar é que os professores são incapazes, que o ministério da educação não faz nada, que os autores dos programas são gente de outro planeta e que os alunos não ligam nenhuma.
Os estudos internacionais, que eu considero razoavelmente fiáveis no contexto limitado em que são feitos, provam que estamos mal a matemática, mas considero que estarmos ao mesmo nível da Espanha e à frente da Grécia e da Itália é uma situação má, não catastrófica.

Catastrófica ou não, quais são as causas para este insucesso? Será ao nível da estrutura de aprendizagem?

Na minha opinião existem diferentes motivos que podem estar na origem deste insucesso, que, apesar de tudo, me recuso a ver como uma catástrofe nacional, tal como costuma ser apresentado.
Os exames de matemática no 12º ano, por exemplo, têm a mesma matriz, quer se destinem a alunos cujo objectivo é o prosseguimento de estudos quer a alunos que pretendem ingressar na vida activa. Esta situação estará resolvida daqui a dois anos, com a diferenciação de exames. Quanto aos programas do 9º ano, por exemplo, foram reformulados em 1991. Não me parece que tenha havido tantas mudanças no tempo que entretanto decorreu.

Há professores que referem que o programa de Matemática A, do qual é co-autor, é muito exigente para os alunos. Que comentário lhe merece esta observação?

Claro que nunca conseguiremos ter o acordo de todos os professores em relação aos programas. Mas penso que a equipa de sete pessoas que o elaborou, onde me incluo, ajustou os programas de uma forma muito aberta e em discussão com os professores através de reuniões de escola e de encontros regionais e nacionais. Obviamente que pode haver discordância, entre uns que o consideram difícil e outros que o consideram adequado.
O programa de matemática foi ajustado entre 1995 e 1997 a partir dos programas de 1991, tendo em atenção tudo o que tinha acontecido no terreno. Antes de sermos convidados para realizar os programas nós tínhamos sido interventores, contestatários e estávamos a par do que tinha acontecido.
Depois, com esta revisão curricular os programas foram uma vez mais reajustados tentando atender às condições no terreno. Eu penso que tenho uma boa base para afirmar que os programas de matemática A, se forem dados nas condições para os quais foram elaborados (três aulas de noventa minutos, uma das quais desdobrada), são perfeitamente exequíveis.
No entanto, há duas contrariedades. Uma delas é o facto de os alunos chegarem ao 10º ano com lacunas difíceis de serem resolvidas pela escola, e aí não há programa que resista. Se a transição entre o 3º ciclo e o secundário não for resolvida, ela será sempre uma franja de perturbação no sistema. E é muito preocupante que haja uma taxa de reprovações que se situa entre os 30 e os 40%.

Qual é a segunda questão?

O segundo problema é que em Portugal existem manuais escolares que não respeitam na íntegra os programas. Não respeitando todo o programa, existem aspectos que o extravasam. E se o professor considera que seguir o manual escolar é a melhor estratégia para o aluno, isso tem necessariamente consequências ao nível dos exames nacionais.

A matemática em função das necessidades de aprendizagem

Há quem defenda que a descontinuidade das aprendizagens e a falta de articulação entre os três ciclos poderão também ser apontadas como principais causas para os níveis de insucesso. Concorda?

Sim, de facto há um desfasamento entre o que se aprende no ensino básico, nomeadamente no 3º ciclo, e no ensino secundário. Por diversas razões, incluindo o não funcionamento razoável do sistema educativo, que leva a que os programas não sejam cumpridos na íntegra.
Na anterior revisão curricular estava previsto que nas nove primeiras semanas se desenvolvessem estratégias de diagnóstico e se propusessem, a nível interno das escolas, actuações que ajudassem os alunos a ultrapassar as dificuldades de adaptação. Há por isso uma descontinuidade nas práticas, não nos programas.
Por outro lado, enquanto que no ensino secundário houve uma tentativa de acompanhar os professores ao nível da formação e de ajustar os programas através de um compromisso mútuo, editando simultaneamente materiais de apoio, no ensino básico nunca se verificou uma intervenção semelhante.

Pensa que houve uma desvalorização da matemática com a reforma do ensino secundário? Era uma disciplina obrigatória e passou a ser opcional em diversas áreas?

Há duas revisões curriculares do ensino secundário: a que não entrou em vigor e a que entrou em vigor. Esta última, de facto, desvaloriza a matemática. Sendo eu professor de matemática e autor de programas da disciplina, posso parecer suspeito em afirmá-lo. Mas olhando objectivamente para as necessidades sociais dos cidadãos, há situações em já é necessário utilizar certos conhecimentos que os nove anos de ensino básico e obrigatório já não garantem, pelo menos no que se refere à actual estrutura dos programas.
Um exemplo que costumo referir é o das eleições. Será o nosso sistema proporcional justo? Poderá haver algum sistema proporcional eventualmente mais justo? O que significa um partido ter mais ou menos deputados? Os cidadãos, os militantes e os dirigentes percebem a matemática que está por trás do sistema eleitoral? São questões importantes e que têm consequências em termos políticos. Não é a matemática que vai resolver os problemas, mas eles não podem ser resolvidos sem a matemática.

Está portanto a admitir que faz sentido dividir a aprendizagem da matemática em dois níveis, uma para o prosseguimento de estudos e outra para a vida activa?

Sim, que corresponde à estrutura de revisão curricular que não entrou em vigor, que não é aquela que defendo mas que se aproxima dela, que contempla três níveis de matemática: a matemática das áreas científicas e tecnológicas, destinada ao prosseguimento de estudos, que tendo aplicações do ponto de vista abstracto é mais exigente; a matemática de cariz mais técnico vocacionada para os cursos tecnológicos, que sirva os alunos que optam pela entrada na vida activa em profissões eminentemente técnicas; e uma formação exigida aos restantes, das áreas sociais e humanas, que não têm uma necessidade técnica da matemática mas que precisam de ter uma noção da linguagem matemática.
Na revisão curricular que não chegou a entrar em vigor havia, no 12º ano, nas disciplinas opcionais, uma de formação matemática complementar onde se abordavam temas como a teoria das eleições, a criptografia ? os códigos secretos utilizados em comunicação ? e outros temas que porventura interessam ao comum cidadão.

A própria ministra da educação e o governo já reconheceram que é necessário um ?plano de emergência para o ensino?, melhorando a actual estrutura de aprendizagem e as necessidades de formação?

O Ministério da Educação chegou a encomendar um relatório, editado em 1997, onde era feito um conjunto de propostas na área da matemática que abrangiam a totalidade do sistema educativo.
Entre elas estava a criação de uma categoria de professores especialistas em matemática do 1º ciclo, que teriam por missão fazer um trabalho itinerante nas escolas, colaborando com a formação dos professores que tivessem maiores dificuldades no ensino da disciplina e procurando melhorar a sua prestação.
Eu defendo, desde há muito tempo, que deve existir uma intervenção prioritária a nível do ensino básico, mas recuso uma ideia catastrofista. Nós precisávamos de passar da fase da catástrofe para a fase do problema e daí para a apresentação de soluções.
É neste sentido que vão as propostas apresentadas pela ministra da educação para o 1º ciclo, decorrentes de vários relatórios já apresentados, nomeadamente aquele que já citei, um outro da Associação Portuguesa de Professores de Matemática, de 2001, bem como outros relatórios internacionais que têm recomendado este tipo de intervenção.

Reconhecendo, então, que é sobretudo a forma como se dá a matemática na escola, e não os conteúdos, que afasta o interesse dos alunos?

Sim, e essa ideia não é original. Numa publicação datada de 1967, da autoria daquele que terá sido porventura o maior matemático português do século XX, José Sebastião e Silva, o próprio referia que ?a modernização do ensino da matemática terá de ser feita não só quanto a programas mas também quanto a métodos de ensino. O professor deve abandonar, tanto quanto possível, o método expositivo tradicional, em que o papel dos alunos é quase cem por cento passivo, e procurar, pelo contrário, seguir o método activo, estabelecendo diálogo com os alunos e estimulando a imaginação destes, de modo a conduzi-los, sempre que possível, à redescoberta?.
Não é uma moda nova reconhecer que temos de actuar não só nos conteúdos mas também nos métodos de ensino. O ensino da matemática, tal como em outras disciplinas, deve basear-se numa participação activa do aluno e na ajuda do professor ao seu percurso de auto-descoberta. O aluno não percebe algo que lhe é apresentado de fora para dentro, e a matemática exige que se simplifique o caminho do concreto para o abstracto, construindo estruturas gradualmente complexas.

Alterar a estrutura da formação inicial e apostar na formação contínua

A melhoria dos resultados a matemática passa também, em grande parte, pela formação inicial. A ministra já referiu que não só é necessário mudar a sua estrutura como também alterar as condições de recrutamento dos professores, sobretudo no que se refere ao ensino básico. Concorda?

Sim. Um aluno que tenha tido uma má relação com a matemática, que transita para o ensino secundário com uma nota negativa e se candidata a um curso de formação de professores do 1º ciclo, onde irá ter de ensinar matemática, ciências naturais e físico-químicas, não conseguirá, certamente, ser um professor completo. Neste caso, das duas uma: ou o candidato tem uma formação prévia antes de ingressar na docência ou os cursos de formação de professores de 1º ciclo têm de oferecer uma formação mais sólida nesta área.

Isso poderia levar a questionar se a monodocência no 1º ciclo será o sistema mais adequado?

Podia pensar-se nesses termos. Aliás, há países que não praticam a monodocência. Não penso que haja uma solução única para o nosso sistema educativo, e nesse sentido tanto a monodocência como a pluridocência podem funcionar. É uma decisão política, mas a partir do momento em que se toma uma decisão o resto do sistema deve ser coerente com ela.
Mas mesmo aqueles que não seguem a via da docência, como sobrevivem no mundo de hoje sem a matemática? É um problema que não considero ser exclusivo dos cursos de formação de professores. Porque não existe matemática no ensino secundário em certas áreas de estudo? Não é com certeza por maquiavelismo dos ministros da tutela, mas sim porque suprimi-la acaba por ser a solução mais fácil.

Qual é, então, a solução ?difícil??

A solução difícil é a solução eficaz, e a solução eficaz implica uma actuação simultânea a diversos níveis.
Em primeiro lugar ao nível da formação inicial de professores. Muitos cursos de formação inicial dos professores do ensino secundário, em Portugal como em outros países, são demasiado teóricos. As disciplinas aprendidas são muito avançadas e quando chegam ao ensino os professores não sabem falar da sua ciência aos alunos. Ora, tem de haver uma formação científica sólida, mas deve saber estabelecer-se a ponte entre essa formação e a comunicação com os alunos ao nível do conteúdo programático.
Mas a formação inicial não chega. A formação contínua é essencial. E um dos aspectos que os estudos internacionais põem a nu é o facto de em Portugal ela ser apenas um terço da média dos países da OCDE. É muito pouco. Nós desvalorizamos esta faceta. É preciso que os professores tenham espírito de investigadores e se actualizem permanentemente.
Depois, uma intervenção ao nível da escola em várias vertentes. Nós somos um dos países do universo do estudo PISA com menos estruturas de apoio aos alunos com dificuldades e com mais alunos de quinze anos retidos no 5º e 6º anos de escolaridade, ao contrário do que sucede nos países do topo, como o Japão, a Coreia do Sul, a Finlândia, a Holanda ou o Reino Unido. E os alunos com dificuldades devem ser apoiados não na base da repetição da matéria, mas através de uma estratégia oposta, tentando perceber qual o tipo de dificuldade que sentem e apresentar situações que os ajudem de facto.
A outra refere-se ao trabalho profissional do professor na escola. Um professor não pode funcionar isoladamente. Tem de haver um trabalho continuado e harmonioso de todos os professores de uma turma. E em Portugal temos de reconhecer que isso não se verifica.

A estabilidade do corpo docente nas escolas seria um factor imprescindível?

Há escolas onde o corpo docente é estável e a colaboração entre os professores da mesma turma e da mesma área disciplinar é insuficiente ou mínimo. Há que reconhecer que não temos uma cultura de escola. As razões são variadas, mas de facto ela não existe. Os estudos internacionais provam que os outros países têm outra noção de cultura de escola, esperam mais dos alunos e incentivam-nos. Em Portugal limitamo-nos, muitas vezes, a lamentar-nos.
Outro aspecto importante será corresponder com um apoio aos professores sempre que se verifiquem alterações curriculares. Foi num projecto desta natureza, de acompanhamento dos professores de matemática do ensino secundário, que eu estive envolvido, que implicou a edição de textos de apoio aos programas, uma formação dirigida aos novos desafios ? sobretudo ao nível dos métodos e do uso das novas tecnologias ? e aos próprios conhecimentos dos professores.
Este projecto, no entanto, foi interrompido, mas tenho esperança que as medidas anunciadas pela actual ministra para o 1º ciclo possam melhorar os resultados a médio prazo, porque nada se consegue de um ano para outro. Porém, é bom que estas medidas se estendam igualmente ao 2º e o 3º ciclos.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 148
Ano 14, Agosto/Setembro 2005

Autoria:

Jaime Carvalho e Silva
Univ. de Coimbra, Fac. de Ciências
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Jaime Carvalho e Silva
Univ. de Coimbra, Fac. de Ciências
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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