Página  >  Edições  >  N.º 145  >  Cinema Coreano: uma fórmula mágica

Cinema Coreano: uma fórmula mágica

O cinema coreano é hoje um dos mais dinâmicos do mundo. A sua vitalidade artística e económica e organização particular  fizeram dele um modelo para toda a Ásia e, por isso, uma ameaça para Hollywood.
Em todo o mundo se fala dele. Hoje, nenhuma cinematografia atrai tantas atenções como a da Coreia do Sul. Os motivos para esta atenção são variados, mesmo antagónicos: alfobre de artistas contemporâneos, exemplo de êxito económico, território de um renovação de filmes de género, epicentro de um desenvolvimento à escala de um continente, referência de uma organização protegida, obstáculo a abater pela liberalização das trocas..., nas revistas de cinema do mundo inteiro (recentemente, em particular, um importante dossier na Film Comment de Novembro, a propósito de uma retrospectiva no Lincoln Center de Nova Iorque) como nas Assembleias da OMC, em Bruxelas como em Xangai, o cinema coreano provoca debate. E também, o que não era obrigatório, é omnipresente nos grandes media do seu país, verdadeiro valor nacional, embora não seja muito difundido nas suas televisões. A ?fórmula mágica? do cinema coreano é pouco conhecida . Mas pode ajudar a responder à questão: será possível criar um modelo, ou melhor um contra-modelo, de Hollywood na Ásia, nos países do Sul mas também na Europa?    
A atenção produzida pela Coreia parece sofrer de uma certa esquizofrenia, o que não é surpreendente, pois a esquizofrenia constitui um mal nacional neste país partido em dois há mais de 50 anos. Há por um lado vigor e diversidade de criação, e por outro, resultados económicos que fazem vertigens. È evidente que os dois resultados estão interligados., mas talvez seja curioso tentar  compreender a natureza da prosperidade económica do cinema coreano. Isto pode resumir-se em alguns dados: de 2000 a 2003, o número de entradas passou de 64,6 milhões para 110 milhões, e ainda ganhou 48% no primeiro semestre de 2004 sobre igual período do ano anterior. A parte do mercado do cinema nacional foi de 62% (em França, que faz normalmente figura de polo de resistência, foi de  30%).
À hegemonia hollywoodiana, respondem os investimentos na produção, o número de filmes em rodagem, a abertura de salas em alta. Na Ásia as exportações explodiram, na Europa e nos Estados Unidos os filmes coreanos começam a ser distribuídos regularmente.
Esta prosperidade do cinema coreano assenta num modelo de outros tempos: os filmes passam apenas nas salas. De facto, a história do cinema coreano e a da televisão - muito poderosa na Coreia- são totalmente independentes. A geração que construiu  a actual televisão fê-lo dominada por um espírito, podemos dize-lo, high tech e business oriented, desenvolvendo-a como um sector moderno numa época onde o cinema era ainda uma pequena indústria mais ou menos artesanal e em parte ligada à máfia. Entretanto o mundo do grande écran mudou, desde que os artistas primeiro, grandes trusts nacionais - ditos chaebols- depois, fizeram, cada um à sua maneira, evoluir o sector. Mas o pequeno écran não produz nem compra praticamente nenhum filme, pelo menos os canais hertzianos, e os efeitos dos canais temáticos ?cinema? são apenas marginais. Mais espantoso ainda, o vídeo e o DVD mantém-se também um mercado secundário, que decresceu na passagem do vídeo ao DVD, sendo mais mercado de aluguer que  de compra. Em Seul, 80% das lojas de vídeo fecharam nos últimos 3 anos. Hoje, mais do que nunca, os coreanos vêm filmes nas salas. A única concorrência é a cópia pirata dos filmes via internet, muito em voga junto da juventude.
A história do cinema coreano assenta sobre um aparente paradoxo: em consequência da guerra civil que fez da parte sul da Coreia um ?protectorado? dos Estados Unidos, um posto avançado do campo ocidental em plena Guerra Fria, controlado por uma ditadura militar, Seul fez  do seu cinema, ao contrário do resto do mundo- um domínio reservado aos americanos - um reduto da reconstrução da identidade colectiva coreana  e preservação da cultura nacional. Esta escolha paradoxal encontra o seu clímax mais radical em 1962, com o estabelecimento de quotas de produção e projecção. Prosperava então uma indústria de cinema largamente mafiosa e ligada à clique militar.
Durante os anos 70 e 80, o sistema das quotas, sem ser abolido, cai em desuso, pois Hollywood consegue dos dirigentes coreanos a sua não aplicação. Até que um estudante cinéfilo e militante do movimento democrático em ascensão que vai derrubar os herdeiros mais abertamente pró-americanos da ditadura, um certo Kim Hyae-joon, desencadeia um movimento a favor da efectiva aplicação da lei.  Kim Hyae-joon é hoje secretário-geral do KOFIC (Conselho do Cinema Coreano), fundado em 1999. O KOFIC não é um órgão ministerial mas uma associação privada, financiada a 100% pelo Estado, que tem a seu cargo propor as regras de organização do sector - que o Ministério da Cultura e Turismo se encarregará de tentar fazer votar - e de verificar a sua aplicação.
?O nosso papel é assegurar a transparência e o equilíbrio no sector, não enquadrá-lo?, explica Kim Hyae-joon. A sua maior preocupação é evitar duas coisas: a concentração monopolista e o fim das quotas. Esta última é, sem dúvida, a mais espinhosa: a pressão americana para que as quotas acabem não tem parado de crescer, colocando-a mesmo como condição para a assinatura do FTA( Free Trade Agreement), que supostamente irá assegurar uma maior prosperidade aos dois países. É impossível encontrar na Coreia um representante do cinema, do mais jovem autor ao maior patrão, que não apoie as quotas. Para salvar este princípio, alguns defendem até a diminuição dos actuais 146 dias por ano  reservados aos filmes nacionais para 106.
O dinamismo do cinema coreano aparece assim como resultante da conjugação de dois fenómenos habitualmente vistos como contraditórios: por um lado, uma poderosa ancoragem num imaginário colectivo nacional, mais vivo devido à  divisão do país e, por outro, a inscrição dinâmica num espaço cada vez mais supra-nacional, a Ásia do Pacífico, que cada vez se vira mais para a China. A combinação destas forças faz-se num quadro público e com um forte dinamismo da indústria privada, o que acaba por resultar na tal ?fórmula mágica? do cinema coreano, estudada, com uma atenção não- dissimulada, pelos responsáveis políticos, económicos e culturais, não só de toda a região, incluindo o Japão, que injectou pela primeira vez em 60 anos dinheiro público no cinema , mas também dos grandes países emergentes, como o Brasil e a África do Sul.
Para terminar, é de realçar que o cinema coreano em Portugal teve durante anos o  Fantasporto como montra, e não apenas este ano, como vi escrito algures por alguém que tem andado muito distraído. O cinema coreano não começou, como é bom de ver, com ?Old Boy?( filme de abertura do Fantas), de Chan-Wook Park, embora este tenha ganho a Palma de Ouro em Cannes 2004.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 145
Ano 14, Maio 2005

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo